domingo, 23 de setembro de 2018

BENJAMIN, Walter. O Narrador.



BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.

1
O narrador – por mais familiar que nos soe esse nome – não está absolutamente presente entre nós, em sua eficácia viva. Ele é para nós algo de distante, e que se distancia cada vez mais. P. 213.

É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. [...] É como se estivéssemos sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. P. 213.

Uma das causas desse fenômeno é evidente: as ações da experiência estão em baixa. P. 214                                           

2
A experiência que passa de boca em boca é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. P. 214

[...] o narrador como alguém que vem de longe. P. 214

4
O senso prático é uma das características de muitos narradores natos. P. 216

Mas, se “dar conselhos” soa hoje como algo antiquado, isto se deve ao fato de a s experiências estarem perdendo a sua comunicabilidade. Em consequência, não podemos dar conselhos nem anos mesmos nem aos outros. P. 216

O conselho tecido na substância da vida vivida tem um nome: sabedoria. A arte de narrar aproxima-se de seu fim porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. P. 217

Ele é muito mais um sintoma das forças produtivas seculares, históricas, que expulsam gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo [...] p. 217

5
O primeiro indício do processo que vai culminar no ocaso da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. P. 217

A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. P. 217

O primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote, já ensina como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um doa mais nobres heróis – de Dom Quixote, justamente – são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria. P. 217

6
[...] verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora que ele, e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação. P. 218

[...] o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação que forneça um ponto de apoio para o que está próximo. P 219

Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação tem uma participação decisiva nesse declínio. P. 219
A cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão para tal é que todos os fatos já nos chegam impregnados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece é favorável à narrativa, e quase tudo beneficia a informação. Metade da arte narrativa está em, ao comunicar uma história, evitar explicações. P. 219

A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se esgota jamais. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desdobramentos. P. 220

8
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. P. 221

9
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. P. 221

“O homem de hoje não cultiva mais aquilo que não pode ser abreviado”. Paul Valéry. P. 223

10
Durante o século XIX, a sociedade burguesa produziu, com as medidas higiênicas e sociais privadas e públicas, um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte. Morrer era antes um episódio público na vida do indivíduo, e seu caráter era altamente exemplar [...] p. 223

Ora, é no moribundo que não apenas o saber e a sabedoria do homem, mas sobretudo sua vida vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. P. 224

13

Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da transmissão. P. 227

A rememoração funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. P. 228

O que se anuncia nessas passagens é a memória perpetuadora do romancista, em contraste com a breve memória do narrador. P. 228

14
Aqui, “o sentido da vida”, e lá, “a moral da história” – esses dois lemas distinguem entre si o romance e a narrativa [...] p. 230

15
Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. P. 230

16
O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais. P.

231
Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens – é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento. p 232


17

Poucos narradores tiveram uma afinidade tão profunda com o espírito do conto de fadas como Leskov. Essas tendências foram favorecidas pelos dogmas da Igreja ortodoxa grega. Nesses dogmas, como se sabe, a especulação de Orígenes, rejeitada pela Igreja Romana, sobre a apocatastasis, a admissão de todas as almas ao Paraíso, desempenha um papel significativo. [...] p. 233

19
Podemos dizer que os provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um gesto, como a hera abraça um muro. P. 239

[...] o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. P. 240

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