quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha.



AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.

1 - a testemunha


1.3. Em latim, há dois termos para representar a testemunha. O primeiro, testis, de que deriva o nosso termo testemunha, significa etimologicamente aquele que se põe como terceiro (*tertis) em um processo ou em um litígio entre dois contendores. O segundo, superstes, indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso. p. 27


Há uma consistência não jurídica da verdade, na qual a quaestio facti nunca poderá ser reduzida à quaestio iuris. idem


1.4. Um dos equívocos mais comuns - e não é só a propósito do campo - é a tácita confusão entre categorias éticas e categorias jurídicas (ou, pior ainda, entre categorias jurídicas e categorias teológicas: a nova teodiceia). Quase todas as categorias de que nos servimos em matéria moral ou religiosa são de algum modo contaminadas com o direito: culpa, responsabilidade, inocência, julgamento, absolvição…[...] como os juristas sabem muito bem, acontece que o direito não tende, em última análise, ao estabelecimento da justiça. Nem sequer ao da verdade. Busca unicamente o julgamento. [...] Nessa criatura híbrida, a respeito da qual não é possível dizer se é fato ou norma, o direito encontra paz; além disso ele não consegue ir. p. 28


Ora, se a essência da lei -  de toda lei - é o processo, se todo direito (e a moral que está contaminada por ele) é unicamente direito (e moral) processual, então execução e transgressão, inocência e culpabilidade, obediência e desobediência se confundem e perdem importância. [...] A finalidade última da norma consiste em produzir um julgamento; este, porém, não tem em vista nem punir nem premiar, nem fazer justiça nem estabelecer a verdade. O julgamento é em si mesmo a finalidade, e isso - já foi dito - constitui o seu mistério, o mistério do processo. Idem


Uma das consequências que é possível tirar dessa natureza autorreferencial do julgamento - e quem a tirou foi um grande jurista italiano - é que a pena não é consequência do julgamento, mas que ele mesmo é a pena (nullum judicium sine poena). [...] Isso significa também que “a sentença de absolvição é a confissão de um erro judicial”, que “cada um é intimamente inocente”, mas que o único verdadeiro inocente “não é quem acaba sendo absolvido, e sim quem passa pela vida sem julgamento”. p. 29


A teodiceia é um processo que não procura definir as responsabilidades dos homens, mas aquelas de Deus. P. 30


A descoberta inaudita que Levi fez em Auschwitz diz respeito a um assunto refratário a qualquer identificação de responsabilidade: ele conseguiu isolar algo parecido com um novo elemento ético. Levi denomina-o de “zona cinzenta”. Ela é aquela da qual deriva a “longa cadeia de conjunção entre vítimas e algozes”, em que o oprimido se torna opressor e o carrasco, por sua vez, aparece como vítima. Idem [...]


Trata-se, portanto, de uma zona de irresponsabilidade e de “impotentia judicanti”, que não se situal além do bem e do mal, mas está, por assim dizer, aquém dos mesmos. P. 31


O verbo latino spondeo, do qual deriva nosso termo “responsabilidade”, significa “apresentar-se como fiador de alguém (ou de si mesmo) com relação a algo perante alguém”.
[...] O gesto de assumir responsabilidade é, portanto, genuinamente jurídico, e não ético. [...] como tal, ele está estreitamente vinculado ao conceito de culpa que, em sentido lato, indica a imputabilidade….Idem….de um dano. p. 32


Responsabilidade e culpa exprimem, assim, simplesmente dois aspectos da imputabilidade jurídica e só num segundo momento foram interiorizados e transferidos para fora do direito. disso nascem a insuficiência e a opacidade de toda doutrina ética que tenha a pretensão de se fundamentar nestes dois conceitos. p. 32


Mas a ética é a esfera que não conhece culpa nem responsabilidade: ela é, como sabia Spinoza, a doutrina da vida feliz. Assumir uma culpa e uma responsabilidade [...] significa sair do âmbito da ética para ingressar no do Direito. P. 33


No grego, testemunha é martis, mártir. Os primeiros padres da Igreja derivam daí o termo martirium, a fim de indicar a morte dos cristãos perseguidos que, assim, davam testemunho de sua fé. O que aconteceu nos campos pouco tem a ver com o martírio. [...] Há, no entanto, dois pontos em que as duas coisas parecem aproximar-se. P. 35


O primeiro diz respeito ao próprio termo grego, que deriva de um verbo que significa “recordar”. O sobrevivente tem a vocação da memória, não pode deixar de recordar. P. 36


Mas no segundo ponto o contato é mais íntimo e instrutivo. [...] Os padres tinham frente a si grupos heréticos que rejeitavam o martírio porque ele constituía, na opinião deles, uma morte totalmente insensata (perire sine causa - perecer sem causa). [...] Deus não poderia querer o insensato. Idem


A doutrina do martírio nasce, portanto, para justificar o escândalo de uma morte insensata, de uma carnificina que não podia deixar de parecer absurda. P. 37


Mas isso tem muito a ver com os campos. com efeito, nos campos, o extermínio - para o qual talvez fosse possível encontrar precedentes - apresenta-se, porém, em formas que o tornam absolutamente sem sentido. idem


O infeliz termo “holocausto” (frequentemente com H maiúsculo) origina-se dessa inconsciente exigência de justificar a morte sine causa, de atribuir um sentido ao que parece não poder ter sentido [...] Idem


“Holocausto” é a transição douta do latino holocaustum que, por sua vez, traduz o termo grego holókaustos (um adjetivo que significa literalmente “todo queimado”; o substantivo grego correspondente é holokaústoma). A história semântica do termo é essencialmente cristã, pois os padres da Igreja serviran-se dele a fim de traduzirem - na verdade sem muito rigor e coerência -  a complexa doutrina sacrifical da Bíblia. p. 38


A Vulgata traduz de forma geral olah como holocaustum. [...] Da Vulgata, o termo holocaustum passa aos padres latinos, que usam o termo, nos numerosos comentários do texto sagrado, sobretudo para indicar os sacrifícios dos Hebreus. [...] Importa aqui sobretudo chamar a atenção para dois fatos. O primeiro, de que o termo, no sentido próprio, é precocemente usado pelos padres como arma polêmica contra os Hebreus, a fim de condenarem a inutilidade dos sacrifícios cruentos [...]. O segundo, de que o termo é extensivo, por metáfora, aos mártires cristãos, com o objetivo de equiparar o seu suplício a um sacrifício. [...] enquanto o próprio sacrifício de cristo na cruz é definido como holocausto [...]. p. 39


A partir daqui o termo holocausto começará a migração semântica que o levará a assumir, de modo cada vez mais consistente, nas línguas vulgares, o significado de “sacrifício supremo, no marco de uma entrega total a causas sagradas e superiores”, registrado pelos léxicos contemporâneos. Idem


A formação de um eufemismo, ao implicar a substituição da expressão própria por algo de que, realmente, não se quer ouvir falar, com expressão atenuada ou alterada, sempre traz consigo ambiguidades. Nesse caso, porém, a ambiguidade vai muito além. Inclusive os judeus recorrem a um eufemismo para indicar o extermínio. Trata-se do termo shoá, que significa “devastação, catástrofe” e, na Bíblia, implica muitas vezes a ideia de uma punição divina. [...]. Mesmo que seja provavelmente a esse termo que se refere Levi, ao falar da tentativa de interpretar o extermínio como uma punição pelos nossos pecados, o eufemismo qui não contém escárnio algum. Pelo contrário, no caso do termo “holocausto”, estabelecer uma vinculação, mesmo distante, entre Auschwitz e o olah bíblico, e entre a morte nas câmaras de gás e a “entrega total a causas sagradas e superiores” não pode deixar de soar como uma zombaria. O termo não só supõe uma inaceitável equiparação entre fornos crematórios e altares, mas acolhe uma herança semântica que desde o início traz uma conotação antijudaica. Por isso, nunca faremos uso deste termo. Quem continua a fazê-lo, demonstra ignorância ou insensibilidade (ou uma e outra coisa ao mesmo tempo) p. 40


O verbo que traduzimos por “adorar em silêncio” é, no texto grego, euphemein. Desse termo, que significa originalmente “observar o silêncio religioso”, deriva a palavra moderna “eufemismo”, que indica os termos que substituem outros que, por pudor ou boas maneiras, não podem ser pronunciados. Dizer que Auschwitz é “indizível” ou “incompreensível” equivale a euphemein, a adorá-lo em silêncio, como se faz com um deus; significa, portanto, independente das intenções que alguém tenha, contribuir para a sua glória. Nós, pelo contrário, “não nos envergonhamos de manter fixo o olhar no inenarrável”. Mesmo ao preço de descobrirmos que aquilo que o mal sabe de si, encontramo-lo facilmente também em nós. p. 42


Quem assume para si o ônus de testemunhar por eles, sabe que deve testemunhar pela impossibilidade de testemunhar. Isso, porém, altera de modo definitivo o valor do testemunho, obrigando a buscar o sentido em uma zona imprevista. p. 43


A shoá é um acontecimento sem testemunhas no duplo sentido, de que sobre ela é impossível testemunhar tanto a partir de dentro - pois não se pode testemunhar de dentro da morte, não há voz para a extinção da voz - quanto a partir de fora -, pois o outsider é excluído do acontecimento por definição [...] p. 44

[...] o testemunho é o encontro entre duas impossibilidades de testemunhar, que a língua, para testemunhar, deve ceder o lugar a uma não-língua, mostrar a impossibilidade de testemunhar. A língua do testemunho é uma língua que não significa mais, mas que, nesse seu ato de não-significar, avança no sem-língua até recolher outra insignificância, a da testemunha integral, de quem, por definição, não pode testemunhar. [...] Assim, a impossibilidade de testemunhar, a “lacuna” que constitui a língua humana, desaba sobre si mesma para dar lugar a uma outra impossibilidade de testemunhar - a daquilo que não tem língua. p. 48