Walter Benjamin, [...] foi talvez o primeiro intelectual europeu a se dar conta de uma mudança fundamental que tinha ocorrido na transmissibilidade da cultura e da nova relação com o passado que era a sua inevitável consequência. P. 169
Benjamin, que persegui por toda a
vida o projeto de escrever uma obra composta exclusivamente de citações, tinha
entendido que a autoridade que a citação invoca se funda precisamente na
destruição da autoridade que a um certo texto é atribuída pela situação na
história da cultura: a sua carga de verdade é função da unicidade da sua
aparição, estranhada do seu contexto vivo, [...]. p. 170
É fácil notar que a função
estranhadora das citações é o exato correspondente crítico do estranhamento
efetuado pelo ready-made [...]. Também
aqui um objeto, cujo sentido é garantido pela “autoridade” do seu uso
cotidiano, perde de imediato a sua inteligibilidade tradicional para se
carregar de um inquietante poder traumatógeno. P. 170 (nota de rodapé)
[...] em uma sociedade
tradicional, nem a citação nem a coleção são, de fato, concebíveis, porque não
é possível despedaçar em ponto algum as malhas da tradição através da qual se
efetiva a transmissão do passado. P. 172
A obra de arte perde, portanto, a
autoridade e as garantias que derivavam da sua inserção em uma tradição, para a
qual ela construía os lugares e os objetos em que incessantemente se realiza o
elo entre passado e presente [...]. p. 172
Baudelaire é o poeta que tem que
enfrentar a dissolução da autoridade da tradição na nova civilização industrial
e se encontra, por isso, na situação de ter que inventar uma nova autoridade: e
ele cumpriu essa tarefa fazendo da própria intransmissibilidade da cultura um
novo valor e colocando a experiência do choc
no centro do próprio trabalho artístico. O choc é a força de colisão que as coisas adquirem quando perdem a
sua transmissibilidade e a sua compreensibilidade no interior de uma dada ordem
cultural. Baudelaire compreendeu que, se a arte queria sobreviver à ruina da
tradição, o artista tinha que tentar reproduzir na sua obra aquela mesma
destruição da transmissibilidade que estava na origem da experiência do choc: desse modo ele conseguiria fazer
da obra o veículo mesmo do intransmissível. Através da teorização do belo como
epifania instantânea e inapreensível (um
éclair...puis la nuit!), Baudelaire fez da beleza estética a cifra da
impossibilidade da transmissão. P. 173
[...] valor-estranhamento [...]
cuja produção se tornou a tarefa específica do artista moderno: nada além da
destruição da transmissibilidade da cultura. P. 173
[...] esse estranhamento não é,
por sua vez, senão a medida da destruição da sua transmissibilidade, isto é, da
tradição. P. 173
Em um sistema tradicional, a
cultura existe somente no ato da sua transmissão, isto é, no ato vivo da sua
tradição. P. 173
Contrariamente ao que pode
parecer à primeira vista, a ruptura da tradição não significa de fato e de modo
algum, a perda ou a desvalorização do passado: é, antes, bem provável que
apenas então o passado se revele enquanto tal com um peso e uma influência
antes desconhecida. Perda da tradição significa, no entanto, que o passado
perdeu a sua transmissibilidade e, até que não se tenha encontrado um novo modo
de entrar em relação com ele, o passado pode, doravante, ser apenas objeto de
acumulação. P. 174
Mas, quando uma cultura perde os
próprios meios de transmissão, o homem se encontra privado de pontos de
referência e acuado entre um passado que se acumula incessantemente às suas
costas e o oprime com a multiplicidade dos seus conteúdos tornados
indecifráveis e um futuro que ele não possui ainda e não lhe fornece nenhuma
luz na sua luta com o passado. P. 175
O anjo da história de W.B.
Ele tem o rosto voltado para o
passado. Onde aparece para nós uma cadeia de eventos, ele vê uma só catástrofe,
que acumula sem trégua ruína sobre ruína e as lança aos seus pés. Ele bem
gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o despedaçado. Mas uma
tempestade sopra do paraíso e se prendeu nas suas asas, e é tão forte que ele não
pode fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele volta as costas, enquanto o acúmulo de ruínas sobe diante dele até o
céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (apud Agamben) P. 176
Há uma célebre gravura de Dürer
que apresenta alguma analogia com a interpretação que Benjamin dá do quadro de
Klee. Ela representa uma criatura alada sentada, no ato de meditar, olhando
absorto para frente. Ao lado dela, jazem abandonados no chão os utensílios da
vida ativa: uma mó, uma plaina, pregos, um martelo, um esquadro, um alicate e
uma serra. O belo rosto do anjo está imerso na sombra: somente as suas longas
vestes e uma esfera imóvel diante dos seus pés refletem a luz. Às suas costas,
distinguimos uma ampulheta cuja areia está escorrendo, um sino, uma balança e um
quadrado mágico e, no mar que aparece no fundo, um cometa que brilha sem
esplendor. Sobre toda a cena se difunde uma atmosfera crepuscular, que parece
extrair de cada particularidade a sua materialidade. P. 176.
[...] poderia representar o anjo
da arte. P. 176
Enquanto o anjo da história tem o
olhar voltado para o passado, mas não pode se deter na sua incessante fuga para
trás em direção ao futuro, o anjo melancólico da gravura de Dürer olha imóvel
para frente. A tempestade do progresso que se prendeu nas asas do anjo da
história aqui se acalmou e o anjo da arte parece imerso em uma dimensão
atemporal, como se algo, interrompendo o continuum
da história, tivesse fixado a realidade circundante em um tipo de suspensão
messiânica. Mas, assim como os eventos do passado aparecem para o anjo da
história como um acúmulo de indecifráveis ruínas, os utensílios da vida ativa e
os outros objetos que estão espalhados em torno do anjo melancólico perderam o
significado com o qual os investia a sua utilidade cotidiana e ganharam um
potencial de estranhamento que faz deles a cifra de algo inapreensível. P.
176-177
E a melancolia do anjo é a
consciência de ter feito do estranhamento o próprio mundo e a nostalgia de uma
realidade que ele não pode possuir de outro modo a não ser tornando-a irreal.
P. 177
Através da destruição da sua
transmissibilidade, ela recupera negativamente o passado, fazendo da
intransmissibilidade um valor em si na imagem da beleza estética e abrindo,
assim, para o homem um espaço entre o passado e futuro no qual ele pode fundar
a sua ação e o seu conhecimento.
Esse espaço é o espaço estético:
mas o que nele é transmitido é precisamente a impossibilidade a transmissão, e
a sua verdade é a negação da verdade dos seus conteúdos. P. 178
O anjo da história, cujas asas se
prenderam na tempestade do progresso, e o anjo da estética, que fixa em uma
dimensão atemporal a ruína do passado, são inseparáveis. P. 179
[A arte] se emancipou do mito
para se ligar à história. P. 183
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