domingo, 23 de setembro de 2018

AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. O anjo melancólico. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.



Walter Benjamin, [...] foi talvez o primeiro intelectual europeu a se dar conta de uma mudança fundamental que tinha ocorrido na transmissibilidade da cultura e da nova relação com o passado que era a sua inevitável consequência. P. 169

Benjamin, que persegui por toda a vida o projeto de escrever uma obra composta exclusivamente de citações, tinha entendido que a autoridade que a citação invoca se funda precisamente na destruição da autoridade que a um certo texto é atribuída pela situação na história da cultura: a sua carga de verdade é função da unicidade da sua aparição, estranhada do seu contexto vivo, [...]. p. 170

É fácil notar que a função estranhadora das citações é o exato correspondente crítico do estranhamento efetuado pelo ready-made [...]. Também aqui um objeto, cujo sentido é garantido pela “autoridade” do seu uso cotidiano, perde de imediato a sua inteligibilidade tradicional para se carregar de um inquietante poder traumatógeno. P.  170 (nota de rodapé)

[...] em uma sociedade tradicional, nem a citação nem a coleção são, de fato, concebíveis, porque não é possível despedaçar em ponto algum as malhas da tradição através da qual se efetiva a transmissão do passado. P. 172

A obra de arte perde, portanto, a autoridade e as garantias que derivavam da sua inserção em uma tradição, para a qual ela construía os lugares e os objetos em que incessantemente se realiza o elo entre passado e presente [...]. p. 172

Baudelaire é o poeta que tem que enfrentar a dissolução da autoridade da tradição na nova civilização industrial e se encontra, por isso, na situação de ter que inventar uma nova autoridade: e ele cumpriu essa tarefa fazendo da própria intransmissibilidade da cultura um novo valor e colocando a experiência do choc no centro do próprio trabalho artístico. O choc é a força de colisão que as coisas adquirem quando perdem a sua transmissibilidade e a sua compreensibilidade no interior de uma dada ordem cultural. Baudelaire compreendeu que, se a arte queria sobreviver à ruina da tradição, o artista tinha que tentar reproduzir na sua obra aquela mesma destruição da transmissibilidade que estava na origem da experiência do choc: desse modo ele conseguiria fazer da obra o veículo mesmo do intransmissível. Através da teorização do belo como epifania instantânea e inapreensível (um éclair...puis la nuit!), Baudelaire fez da beleza estética a cifra da impossibilidade da transmissão. P. 173

[...] valor-estranhamento [...] cuja produção se tornou a tarefa específica do artista moderno: nada além da destruição da transmissibilidade da cultura. P. 173

[...] esse estranhamento não é, por sua vez, senão a medida da destruição da sua transmissibilidade, isto é, da tradição. P. 173

Em um sistema tradicional, a cultura existe somente no ato da sua transmissão, isto é, no ato vivo da sua tradição. P. 173

Contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, a ruptura da tradição não significa de fato e de modo algum, a perda ou a desvalorização do passado: é, antes, bem provável que apenas então o passado se revele enquanto tal com um peso e uma influência antes desconhecida. Perda da tradição significa, no entanto, que o passado perdeu a sua transmissibilidade e, até que não se tenha encontrado um novo modo de entrar em relação com ele, o passado pode, doravante, ser apenas objeto de acumulação. P. 174

Mas, quando uma cultura perde os próprios meios de transmissão, o homem se encontra privado de pontos de referência e acuado entre um passado que se acumula incessantemente às suas costas e o oprime com a multiplicidade dos seus conteúdos tornados indecifráveis e um futuro que ele não possui ainda e não lhe fornece nenhuma luz na sua luta com o passado. P. 175

O anjo da história de W.B.

Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde aparece para nós uma cadeia de eventos, ele vê uma só catástrofe, que acumula sem trégua ruína sobre ruína e as lança aos seus pés. Ele bem gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o despedaçado. Mas uma tempestade sopra do paraíso e se prendeu nas suas asas, e é tão forte que ele não pode fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o acúmulo de ruínas sobe diante dele até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (apud Agamben) P. 176

Há uma célebre gravura de Dürer que apresenta alguma analogia com a interpretação que Benjamin dá do quadro de Klee. Ela representa uma criatura alada sentada, no ato de meditar, olhando absorto para frente. Ao lado dela, jazem abandonados no chão os utensílios da vida ativa: uma mó, uma plaina, pregos, um martelo, um esquadro, um alicate e uma serra. O belo rosto do anjo está imerso na sombra: somente as suas longas vestes e uma esfera imóvel diante dos seus pés refletem a luz. Às suas costas, distinguimos uma ampulheta cuja areia está escorrendo, um sino, uma balança e um quadrado mágico e, no mar que aparece no fundo, um cometa que brilha sem esplendor. Sobre toda a cena se difunde uma atmosfera crepuscular, que parece extrair de cada particularidade a sua materialidade. P. 176.

[...] poderia representar o anjo da arte. P. 176

Enquanto o anjo da história tem o olhar voltado para o passado, mas não pode se deter na sua incessante fuga para trás em direção ao futuro, o anjo melancólico da gravura de Dürer olha imóvel para frente. A tempestade do progresso que se prendeu nas asas do anjo da história aqui se acalmou e o anjo da arte parece imerso em uma dimensão atemporal, como se algo, interrompendo o continuum da história, tivesse fixado a realidade circundante em um tipo de suspensão messiânica. Mas, assim como os eventos do passado aparecem para o anjo da história como um acúmulo de indecifráveis ruínas, os utensílios da vida ativa e os outros objetos que estão espalhados em torno do anjo melancólico perderam o significado com o qual os investia a sua utilidade cotidiana e ganharam um potencial de estranhamento que faz deles a cifra de algo inapreensível. P. 176-177

E a melancolia do anjo é a consciência de ter feito do estranhamento o próprio mundo e a nostalgia de uma realidade que ele não pode possuir de outro modo a não ser tornando-a irreal. P. 177

Através da destruição da sua transmissibilidade, ela recupera negativamente o passado, fazendo da intransmissibilidade um valor em si na imagem da beleza estética e abrindo, assim, para o homem um espaço entre o passado e futuro no qual ele pode fundar a sua ação e o seu conhecimento.
Esse espaço é o espaço estético: mas o que nele é transmitido é precisamente a impossibilidade a transmissão, e a sua verdade é a negação da verdade dos seus conteúdos. P. 178

O anjo da história, cujas asas se prenderam na tempestade do progresso, e o anjo da estética, que fixa em uma dimensão atemporal a ruína do passado, são inseparáveis. P. 179

[A arte] se emancipou do mito para se ligar à história. P. 183

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