segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

ARENDT, Hannah: A condição humana.




PRÓLOGO

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Em 1957, um objeto terrestre, feito pelo homem, foi lançado ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra [...]
Esse evento, que em importância ultrapassa todos os outros, até mesmo a fissão do átomo, teria sido saudado com incontida alegria, não fossem as incômodas circunstâncias militares e políticas que o acompanhavam. [...]
A reação imediata expressa no calor da hora, foi alívio ante o primeiro “passo para a fuga dos homens de sua prisão na Terra”. E essa estranha declaração, longe de ter sido o lapso acidental de algum repórter norte-americano, refletia involuntariamente a extraordinária frase gravada há mais de 20 anos no obelisco fúnebre de um dos grandes cientistas da Rússia: “A humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra.”

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Devem a emancipação e a secularização da era moderna, [...] terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma Terra que era a Mãe de todas as criaturas sob o firmamento?

A Terra é a própria quintessência da condição humana, e a natureza terrestre, ao que sabemos, pode ser a única no universo capaz de proporcionar aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O artifício humano do mundo separa a existência humana de todo ambiente meramente animal, mas a vida mesma permanece fora desse mundo artificial, e por meio o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos.

O mesmo desejo de escapar do aprisionamento à Terra mani-...

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...festa-se na tentativa de criar a vida em uma proveta, [...] [e] de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos 100 anos.

Esse homem do futuro [...] parece imbuído por uma rebelião contra a existência humana tal como ela tem sido dada – um dom gratuito vindo de lugar nenhum (secularmente falando) que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar tal troca, assim como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica na Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico, e essa questão não pode ser decidida por meios científicos; é uma questão política de primeira grandeza [...]

[...] O problema tem a ver com o fato de que as “verdades” da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas tecnologicamente, já não se prestam à expressão normal no discurso e no pensamento. Quando se fala conceitual e coerentemente dessas “verdades”, as sentenças resultantes são “talvez não tão sem sentido quanto um ‘círculo triangular’, mas muito mais que um ‘leão alado’” (Erwin Schrödinger).

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[...] Se for comprovado o divórcio entre o conhecimento (no sentido moderno de conhecimento técnico [know-how]) e o pensamento, então passaríamos a ser, sem dúvida, escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso conhecimento técnico, criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja.

Sempre que a relevância do discurso está em jogo, as questões tornam-se políticas por definição, por é o discurso que faz do homem um ser político. Se seguíssemos o conselho, [...] de ajustar nossas atitudes culturais ao estado atual de realização científica, adotaríamos deveras um modo de vida no qual o discurso não teria mais sentido. Pois, atualmente as ciências são forçadas a adotar uma “linguagem” de símbolos matemáticos que, embora originariamente concebida apenas como uma abreviação de afirmações enunciadas, contém agora afirmações que de modo algum podem ser retraduzidas em discurso.  [Os cientistas] se movem em um mundo no qual o discurso perdeu seu poder. E tudo o que os homens...

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...fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que se possa falar sobre. Pode haver verdades para além do discurso e que podem ser de grande relevância para o homem no singular, isto é, para o homem na medida em que, seja o que for, não é um ser político. Os homens no plural, isto é, os homens na medida em que vivem, se movem e agem neste mundo, só podem experimentar a significação porque podem falar uns com os outros e se fazer entender aos outros e a si mesmos.

[...] A era moderna trouxe consigo uma glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação factual de toda a sociedade em uma sociedade trabalhadora. [...] É uma sociedade de trabalhadores a que está para ser liberada dos grilhões do trabalho, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais significativas em vista das quais essa liberdade mereceria ser conquistada.

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O que se nos depara, portanto, é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior.

Este livro não oferece uma resposta a essas preocupações e perplexidades. Tais respostas são dadas diariamente e elas concernem à política prática e estão sujeitas ao acordo de muitos; elas jamais poderiam se basear em considerações teóricas ou na opinião de uma só pessoa, como se lidássemos aqui com problemas para os quais só existe uma solução possível. O que proponho nas páginas que se seguem é uma reconsideração da condição humana do ponto de vista privilegiado de nossas experiências e nossos temores mais recentes. [...] O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se de pensar o que estamos fazendo.

Ele aborda somente as articulações mais elementares da condição humana, aquelas atividades que tradicionalmente, e também segundo a opinião corrente, estão ao alcance de todo ser humano. Por essa e outras razões, a mais elevada e talvez a mais pura atividade de que os homens são capazes, a atividade de pensar, é deixada de fora das presentes considerações. Sistematicamente, portanto, o livro limita-se a uma discussão do trabalho, da obra e da ação, que constituem seus três capítulos...

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...centrais.

Contudo, a era moderna não coincide com o mundo moderno. Cientificamente, a era moderna, que começou no século XVII, terminou no limiar do século XX; politicamente, o mundo moderno em que vivemos hoje nasceu com as primeiras explosões atômicas. Não discuto esse mundo moderno que constitui o pano de fundo da redação deste livro. Limito-me, por um lado, a uma análise daquelas capacidades humanas gerais que provêm da condição humana e são permanentes, isto é, que não podem ser irremediavelmente perdidas enquanto não mudar a própria condição humana. Por outro lado, o propósito final da análise histórica é o de rastrear até sua origem a moderna alienação do mundo, em sua dupla fuga da Terra para o universo e do mundo para o si-mesmo [self], a fim de chegar a uma compreensão da natureza da sociedade [...]

Cap 1
A vita activa e a condição humana

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Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: trabalho, obra e ação.

O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e resultante declínio estão ligados às necessidades vitais produzidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho. A condição humana do trabalho é a própria vida.

A obra é a atividade correspondente à não-naturalidade [unnaturalness] da existência humana, que não está engastada no sempre-recorrente [ever-recurrent] ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último. A obra proporciona um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. [...] A condição humana da obra é a mundanidade [worldliness].

A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. [...] essa pluralidade é especificamente a condição [...] de toda vida política.


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A ação seria um luxo desnecessário, [...] se os homens fossem repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza ou essência fosse a mesma para todos e tão previsível quanto a natureza ou essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá.

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Todas as três atividades e suas condições correspondentes estão intimamente relacionadas com a condição mais geral da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O trabalho assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. a obra e seu produto, o artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e o caráter efêmero do tempo humano. a ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança [remembrance], ou seja, para a história.

[...] das três atividades, a ação tem a relação mais estreita com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir.

[...] como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.

O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens constantemente condicionam, no entanto, os seus produtores humanos.

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[...] os homens, independente do que façam, são seres condicionados. tudo que adentra o mundo humano por si próprio, ou para ele trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A objetividade do mundo [...] e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem coisas, [...]

[...] a condição humana não é o mesmo que a natureza humana, [...]

A mudança mais radical da condição humana que podemos imaginar seria uma emigração dos homens da Terra para algum outro planeta. Tal evento, já não inteiramente impossível, implicaria que o homem teria de viver sob condições produzidas por ele mesmo, radicalmente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece.

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O problema da natureza humana, [...] parece insolúvel, [...]

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[...] as formas de cognição humana aplicáveis às coisas dotadas de qualidades “naturais” [...] de nada nos [valeram] quando levantamos a pergunta: e quem somos nós? É por isso que as tentativas de definir natureza humana resultam quase invariavelmente da construção de alguma deidade, [...] como uma espécie de ideia platônica do homem. [...] desmascarar tais conceitos filosóficos do divino [...] não é uma demonstração da não existência de Deus, e nem mesmo constitui argumento nesse sentido; [...] mas [...] pode lançar suspeitas sobre o próprio conceito de “natureza humana”.

[...] as condições da existência humana [...] jamais podem “explicar” o que somos ou responder à pergunta sobre quem somos, pela simples razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto. Essa sempre foi a opinião da filosofia, em contraposição às ciências [...]

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2
O termo vita activa

O termo vita activa é carregado e sobrecarregado de tradição. [...] E essa tradição, [...] é produto de uma constelação histórica específica: o julgamento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e a pólis. [...] O próprio termo [...] já ocorre em Agostinho [...] reflete ainda o seu significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos-políticos. 


Aristóteles distinguia três modos de vida bioi que os homens podiam escolher livremente, isto é, em inteira independência das necessidades da vida e das relações delas decorrentes. Essa condição prévia de liberdade excluía qualquer modo de vida dedicado sobretudo à preservação da vida [...] [escravo, artesão, mercador] Em suma, excluía todos aqueles que, involuntariamente ou voluntariamente, por toda a vida ou temporariamente, já não podiam dispor em liberdade dos seus movimentos e atividades.

 
Os três modos de vida restantes têm em...

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...comum o fato de se ocuparem do “belo”, isto é, de coisas que não eram necessárias nem meramente úteis: a vida de deleite dos prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da pólis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada pelo consumo humano.

  
p. 17
Com o desaparecimento da antiga cidade-Estado [...] a expressão vita activa perdeu o seu significado especificamente político e passou a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. [...] isso não queria dizer que a obra e o trabalho tinham ascendido na hierarquia das atividades humanas e eram agora tão dignos quanto a vida dedicada à política. De fato, o oposto era verdadeiro: a ação passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena, de modo que a contemplação [...] era agora o único modo de vida realmente livre.


Contudo, a enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro tipo de atividade, inclusive a ação, não é de origem cristã. Encontramo-la na filosofia política de Platão,...

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...em que toda a reorganização utópica da vida na pólis é não apenas dirigida pelo superior discernimento do filósofo, mas não tem outra finalidade senão tornar possível o modo de vida filosófico. A articulação aristotélica dos diferentes modos de vida, em cuja ordem a vida de prazer tem papel secundário, é orientada claramente pelo ideal da contemplação (theória). À antiga liberdade em relação  às necessidades da vida e À coerção de outros, os filósofos acrescentaram a liberdade e a cessação de toda atividade política (skolé), de sorte que a posterior pretensão dos cristãos de serem livres de envolvimento em assuntos mundanos, de todos os negócios deste mundo, foi precedida pela apolitia filosófica da antiguidade tardia, e dela se originou. O que até então havia sido exigido somente por alguns poucos era agora visto como direito de todos.


A expressão vita activa, compreendendo todas as atividades humanas e definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação, corresponde, portanto, mais estritamente à askholia grega (“inquietude”), com a qual Aristóteles designava toda atividade, que ao bios politikos grego. Já desde Aristóteles, a distinção entre quietude e inquietude, entre uma abstenção quase estática de movimento físico externo e qualquer tipo de atividade,  é mais decisiva que a distinção…

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...entre os modos de vida político e teórico, porque afinal pode ocorrer em qualquer um dos três modos de vida.

Tradicionalmente, e até o início da era moderna, a expressão vita activa jamais perdeu sua conotação negativa de “in-quietude”, nec-otium, a-skholia. Como tal, permaneceu intimamente ligada à distinção grega, ainda mais fundamental, entre as coisas que são por si o que são e as coisas que devem ao homem a sua existência, entre as coisas que são physei e as coisas que são nomó. O primado da contemplação sobre a atividade baseia-se na convicção de que nenhuma obra de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade o kosmos físico, que resolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja humana, seja divina.


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Tradicionalmente, portanto, a expressão vita activa recebe seu significado da vita contemplativa; a dignidade que lhe é conferida é muito limitada porque serve às necessidades e carências da contemplação em um corpo vivo [à necessidade de um corpo vivo, ao qual a contemplação permanece vinculada]. O cristianismo, com a sua crença em um outro mundo cujas alegrias se pronunciam nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vita activa à sua posição derivada, secundária; mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (theória) como uma faculdade humana acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que ocorreu na escola socrática e que, desde então, dominou o pensamento metafísico e político durante a nossa tradição.


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Portanto, o uso da expressão vita activa, como aqui o proponho, está em manifesta contradição com a tradição, é que duvido não da validade da experiência subjacente à distinção, mas antes da ordem hierárquica inerente a ela desde o início.

Sustento simplesmente que o enorme valor da contemplação da hierarquia tradicional embaçou as diferenças e articulações no âmbito da própria vita activa e que, a despeito das aparências, essa condição não foi essencialmente alterada pelo moderno rompimento com a tradição nem pela inversão final da sua ordem hierárquica, em Marx e Nietzsche. 

A inversão moderna tem em comum com a tradicional hierarquia a premissa de que a mesma preocupação humana central deve prevalecer em todas as atividades dos homens, posto que, sem um princípio abrangente único, nenhuma ordem poderia ser estabelecida. Tal premissa não é evidente, e meu emprego da expressão vita activa pressupõe que a preocupação subjacente a todas as suas atividades não é a mesma preocupação da vita contemplativa, como não lhe é superior nem inferior.

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3
Eternidade versus imortalidade


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Politicamente falando, se morrer é o mesmo que “deixar de estar entre os homens”, a experiência do eterno é uma espécie de morte, e a única coisa que a separa da morte real é que ela não é definitiva, porque nenhuma criatura viva pode suportá-la durante muito tempo. E é isso precisamente que separa a vita contemplativa da vita activa no pensamento medieval. No entanto, é decisivo que a experiência do eterno, diferentemente da experiência do imortal, não corresponda a qualquer atividade nem possa ser convertida em nenhuma delas, visto que mesmo a atividade do

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pensamento, que ocorre no interior de uma pessoa por meio de palavras, é obviamente não apenas inadequada para propiciar tal experiência, mas a interromperia e a arruinaria.

A theória, ou “contemplação”, é a designação dada à experiência do eterno, em contraposição a todas as outras atitudes que, no máximo, podem ter a ver com a imortalidade.

Contudo, a vitória derradeira da preocupação com a eternidade sobre todos os tipos de aspiração à imortalidade não se deveu ao pensamento filosófico.
[Queda do império romano e promoção do evangelho]

[...] imortalidade que, originalmente, fora a fonte e o centro da vita activa.

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cap. II
Os domínios público e privado.

4
O homem: um animal social ou político

Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos, mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens.

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Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem deus é capaz de ação, e só a ação depende inteiramente da constante presença de outros.


Melhor do que qualquer teoria elaborada, essa substituição inconsciente do político pelo social revela até que ponto havia sido perdida a original compreensão grega da política. Para tanto, é significativo, mas não decisivo, que a palavra “social” seja de origem romana e não tenha equivalente na língua e no pensamento gregos.

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Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas é diferente dessa associação natural cujo centro é o lar (oikio) e a família, mas encontra-se em oposição direta a ela. O surgimento da cidade-Estado significou que o homem recebera, “além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma nítida diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon).


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O pensamento era secundário com relação ao discurso; mas o discurso e a ação eram tidos como coevos e iguais, da mesma categoria e da mesma espécie; [...] o ato de encontrar as palavras certas no momento certo, independentemente da informação ou comunicação que transmitem, constitui uma ação. Somente a pura violência é muda [...]

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Na experiência da pólis, [...] a ação e o discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A ênfase passou da ação para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão e não como a forma especificamente humana de responder, replicar e estar à altura do que aconteceu ou do que foi feito.


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A pólis e a família

A distinção entre as esferas privada e pública da vida corresponde aos domínios da família e da política, que existiram como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-Estado; mas a eclosão da esfera social, que estritamente não era nem privada nem pública, é um fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com a eclosão da era moderna e que encontrou sua forma política no Estado-nação.

Em nosso entendimento, a linha divisória é inteiramente difusa, porque vemos o corpo de povos e

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comunidades políticas como uma família cujos assuntos diários devem ser zelados por uma gigantesca administração doméstica de âmbito nacional. O pensamento científico que corresponde a esse desdobramento já não é a ciência política, e sim a “economia nacional” ou a economia social”, [...] todas as quais indicam uma espécie de “administração doméstica coletiva”; o que chamamos de “sociedade” é o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada “nação”.

[...] o que fosse “econômico”, relacionado com a vida do indivíduo e a sobrevivência da espécie, não era assunto político, mas doméstico por definição. [para os antigos]

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[...] a comunidade natural dólar nascia da necessidade, e a necessidade governava todas as atividades realizadas nela.
            O domínio da pólis, ao contrário, era a esfera da liberdade, e se havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida no lar constituía a condição óbvia para a liberdade da pólis. A política não podia, em circunstâncias alguma, ser apenas um meio para proteger a sociedade [...]

[...] é a liberdade da sociedade [...] que requer e justifica a limitação da autoridade política. A liberdade situa-se no domínio do social, e a força e a violência tornam-se monopólio do governo.

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[...] a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade – governando escravos, por exemplo - e tornar-se livre.

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A pólis diferenciava-se do lar pelo fato de somente conhecer “iguais”, ao passo que o lar era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar.

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A igualdade, portanto, longe de estar ligada à justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade [...]

No mundo moderno, os domínios social e político diferem muito menos entre si. O fato de que a política é apenas uma função da sociedade [...] não foi descoberto por Karl Marx; pelo contrário, foi uma das premissas axiomáticas que Marx recebeu acriticamente dos economistas políticos da era moderna.

[...] com a ascendência da sociedade, isto é, do “lar” (oikia) ou das atividades econômicas ao domínio público, a administração doméstica e todas as questões pertinentes à esfera privada da família transformaram-se em preocupação “coletiva”.

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Esse abismo entre o privado e o público ainda existia de certa forma na Idade Média, embora houvesse perdido muito da sua importância e mudado inteiramente de localização.

[...] o domínio secular, sob o feudalismo, era inteiramente aquilo que o domínio privado havia sido na antiguidade.

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A transferência de todas as atividades humanas para o domínio privado e a conformação de todas as relações humanas ao molde do lar atingiram profundamente as organizações profissionais especificamente medievais nas cidades – as guildas, confréries e compagnos – e mesmo as primeiras companhias comerciais [...] (companis) [...] ‘aqueles que comem do mesmo pão e do mesmo vinho’.

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O advento do social

O aparecimento da sociedade – a ascensão da administração do lar, de suas atividades, seus problemas e dispositivos organizacionais – do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública não apenas turvou a antiga fronteira entre o privado e o público, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importância para a vida do indivíduo e do cidadão, ao ponto de torna-los quase irreconhecíveis.

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Hoje não pensamos mais primeiramente em privação quando empregamos a palavra “privatividade”, e isso em parte se deve ao enorme enriquecimento da esfera privada por meio do moderno individualismo.
[...]
O fato histórico decisivo é que a privatividade moderna, em sua função mais relevante, a de abrigar o que é íntimo, foi descoberta não como o oposto da esfera política, mas da esfera social, com a qual é, portanto, mais próxima e autenticamente relacionada.

O primeiro eloquente explorador da intimidade [...] foi Jean-Jacques Rousseau.

p.48
O surpreendente florescimento da poesia e da música, a partir de meados do século XVIII até quase o último terço do século XIX, acompanhado do surgimento do romance, a única forma de arte inteiramente social, coincidindo com um não menos impressionante declínio de todas as artes mais públicas, especialmente a arquitetura, constitui suficiente testemunho de uma estreita relação entre o social e o íntimo.

A notável ...

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...coincidência da ascensão da sociedade com o declínio da família indica claramente que o que ocorreu, na verdade, foi a absorção da unidade familiar por grupos sociais correspondentes.

Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que outrora era excluída...


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...do lar doméstico. Ao invés da ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a “normalizar” os seus membros, a fazê-los comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária.

[...] a vitória da igualdade no mundo moderno é apenas o reconhecimento político e jurídico do fato de que a sociedade conquistou o domínio público, e que a distinção e a diferença tornaram-se assuntos privados do indivíduo.

Essa igualdade moderna, baseada no conformismo inerente à sociedade, e que só é possível porque o comportamento substitui a ação como principal forma de relação humana, [...]

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É o mesmo conformismo, a suposição de que os homens se comportam ao invés de agir em relação aos demais, que está na base da moderna ciência da economia, cujo nascimento coincidiu com o surgimento da sociedade e que, juntamente com seu principal instrumento técnico, a estatística, se tornou a ciência social por excelência.

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As leis da estatística são válidas somente quando se lida com grandes números e longos períodos de tempo, e os atos ou eventos só podem aparecer estatisticamente como desvios ou flutuações. A justificativa da estatística é a de que os feitos e eventos são ocorrências raras na vida cotidiana e na história. Contudo, o pleno significado das relações cotidianas revela-se não na vida do dia-a-dia, mas em feitos raros, tal como a importância de um período histórico é percebida somente nos poucos eventos que o iluminam.

[...] tudo que não é comportamento cotidiano ou tendência automática é descartado como irrelevante.

[...] cada aumento populacional significa um aumento da validade e uma nítida diminuição dos “desvios”. Politicamente, isso significa que, quanto maior é a população de qualquer corpo político, maior é a probabilidade de que o social, e não o político, constitua o domínio público.

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A uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico inócuo; é sim o ideal político, não mais secreto, de uma sociedade que, inteiramente submersa na rotina da vida cotidiana, aceita pacificamente a concepção inerente à sua própria existência.
  
p. 56
Desde o advento da sociedade, desde a admissão das atividades domésticas e da administração do lar no domínio público, uma das principais características do novo domínio tem sido uma irresistível tendência a crescer, a devorar os domínios mais antigos do político e do privado, bem como a esfera da intimidade, instituída mais recentemente.

p. 57
A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da vida, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual se permite que as atividades relacionadas com a mera sobrevivência apareçam em público.

A atividade de trabalhar, embora relacionada, em qualquer circunstância, com o processo vital em seu sentido mais elementar, o biológico, permaneceu estacionária durante milhares de anos, aprisionada no eterno retorno do processo vital ao qual se encontrava ligada. A promoção do trabalho à estatura de coisa pública, longe de eliminar o seu caráter de processo [...], liberou, ao contrário, esse processo de sua recorrência circular e monótona e transformou-o em progressivo desenvolvimento, cujos resultados alteraram inteiramente, em poucos séculos, todo o mundo habitado.

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O que chamamos de artificial crescimento do natural é visto geralmente como o aumento constantemente acelerado da produtividade do trabalho. O fator isolado mais importante nesse aumento contínuo foi, desde o início, a organização ada atividade do trabalho, visível na chamada divisão do trabalho, que precede a revolução industrial, e na qual se baseia até mesmo a mecanização dos processos de trabalho, o segundo fator mais importante na produtividade do trabalho.

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Aparentemente, em nenhuma outra esfera da vida atingimos tamanha excelência quanto na revolucionária transformação da atividade do trabalho, ao ponto em que o significado verbal do próprio termo [...] começou a perder o seu significado para nós.

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Toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada na privatividade; para a excelência, por definição, é sempre requerida a presença de outros, e essa presença exige a formalização do público, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores.

p. 61
Nem a educação, nem a engenhosidade, nem o talento podem substituir os elementos constitutivos do domínio público, que fazem dele o local adequado para a excelência humana.

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O domínio público: o comum

O termo “público” denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas não completamente idênticos.
Significa, em primeiro lugar, que tudo que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência [...] constitui a realidade.

[...] mesmo as maiores forças da vida íntima [...] levam uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo que assumam um aspecto adequado à aparição pública.

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inter homines esse – “estar entre os homens”

[...] a dor [...], e a morte são tão subjetivas...

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... e alheias ao mundo das coisas e dos homens que não podem assumir aparência alguma.
[...] na cena pública; [...], só pode ser tolerado o que é considerado relevante, digno de ser visto e ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente privado.

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O moderno encantamento com “pequenas coisas”, embora pregado pela poesia do início do século XX em quase todas as línguas europeias, encontrou sua apresentação clássica no petit bonheur do povo francês.

Esse alargamento do privado [...] não o torna público, não constitui um domínio público, mas, pelo contrário, significa apenas que o domínio público foi quase completamente minguado, de modo que, por toda parte, a grandeza cedeu lugar ao encanto; pois, embora o domínio público possa ser vasto, não pode ser encantador, precisamente porque é incapaz de abrigar o irrelevante.

Em segundo lugar, o termo “público” significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que privadamente possuímos nele. [...] tem a ver com o artefato humano, com o que é fabricado pelas mãos humanas, [...].

[...] como todo espeço-entre [in-between], o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si.

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O domínio público, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo, evita que caiamos uns sobre os outros, por assim dizer. O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvidas, [...], mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las, relacioná-las e separá-las.

Encontrar um vínculo entre as pessoas suficientemente forte para substituir o mundo foi a principal tarefa política da primeira filosofia cristã; e foi agostinho quem propôs edificar sobre a caridade não apenas a “fraternidade” cristã, mas todas as relações humanas.

p. 66
A estrutura da vida comum foi modelada pelas relações entre os membros de uma família porque estas eram sabidamente não políticas e mesmo antipolíticas. Jamais existiu um domínio público entre os membros de uma família, e era, portanto, improvável que viesse a surgir da vida comunitária cristã, se essa fosse governada pelo princípio da caridade e nada mais.

p. 67
A não mundanidade como um fenômeno político só é possível com a premissa de que o mundo não durará mas, com tal premissa, é quase inevitável que a não mundanidade venha, de uma forma ou de outra, a dominar a cena política.

Só a existência de um domínio público e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles dependem inteiramente da permanência. Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos, mas tem de transcender a duração da vida de homens mortais.

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[...] o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos.

Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao vir e ir das gerações na medida em que aparece em público. É a publicidade do domínio público que pode absorver e fazer brilhar por séculos tudo o que os homens venham a querer preservar da ruína natural do tempo.

p. 69
A admiração pública é também algo a ser usado e consumido, e o status, como diríamos hoje, satisfaz uma necessidade como o alimento satisfaz outra: [...]

p. 70
Assim, o que importa não é que haja falta de admiração pública pela poesia e pela filosofia no mundo moderno, mas sim que essa admiração não constitui um espaço no qual as coisas são salvas da destruição pelo tempo.

A importância de ser visto e ouvido por outros provém do fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes. É esse o significado da vida pública, em comparação com a qual até a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou multiplicação de cada indivíduo.

p. 71
Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, em variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua volta sabem que veem identidade na mais completa diversidade, pode a realidade do mundo aparecer real e fidedignamente.

O mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite apresentar-se em uma única perspectiva.

p. 72
8
O domínio privado: a propriedade

A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não aparece, e, portanto, é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros.

p. 75
[...] aparentemente, a propriedade possui certas qualificações que, embora situadas no domínio privado, sempre foram tidas como sendo da máxima importância para o corpo político.

p. 83
Não é uma invenção de Karl Marx, mas algo da natureza dessa mesma sociedade que a privatividade, em qualquer sentido, possa apenas estorvar a evolução da “produtividade” social e, portanto, que quaisquer considerações em torno da posse privada devam ser rejeitadas em benefício do processo sempre crescente da riqueza social.

9
O social e o privado

O que chamamos anteriormente de advento do social coincidiu historicamente com a transformação do interesse privado pela propriedade privada em uma preocupação pública. Logo que ingressou no domínio público, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários [property-owners], que, ao invés de requererem o acesso ao domínio público em virtude de sua riqueza, exigiram dele proteção para o acúmulo de mais riqueza.

p. 84
“A comunidade [commonwealth] [...] existia principalmente em benefício da riqueza comum [common wealth].

p. 85
[...] estamos em posição bem melhor para compreender as consequências, para a existência humana, do desaparecimento de ambas essas esferas da vida – a esfera pública, porque se tornou uma função da esfera privada, e a esfera privada, porque se tornou a única preocupação comum que restou.

[...] a moderna descoberta da intimidade parece constituir uma fuga do mundo exterior como um todo para a subjetividade interior do indivíduo, subjetividade esta que antes fora abrigada e protegida pelo domínio privado.

p. 86
Historicamente, a premissa de Locke, de que o trabalho do corpo de uma pessoa é a origem da propriedade, é mais que duvidosa: no entanto, dado o fato de que já vivemos em condições nas quais a única propriedade em que podemos confiar é o nosso talento e a nossa força de trabalho, é mais que provável que ela venha a se tornar verdadeira.

A diferença entre o que temos em comum e o que possuímos privadamente é, em primeiro lugar, que as nossas posses privadas, que usamos e consumimos diariamente, são muito mais urgentemente necessárias que qualquer parte do mundo comum; sem a propriedade, como disse Locke, “de nada vale o comum”.

p. 87
A segunda saliente característica não privativa da privatividade é que as quatro paredes da propriedade privada de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o mundo público comum [...]. Uma existência vivida inteiramente em público, na presença de outros, torna-se, como se diz, superficial. Retém a sua visibilidade, mas perde a qualidade resultante de vir à luz a partir de um terreno mais sombrio, que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade em um sentido muito real, não subjetivo. O único modo eficaz de garantir a escuridão do...

p. 88
... que deve ser escondido da luz da publicidade é a propriedade privada, um lugar possuído privadamente para se esconder.

p. 89
O fato de que a era moderna emancipou as classes operárias e as mulheres quase no mesmo momento histórico deve, certamente, ser ...

p. 90
... incluído entre as características de uma era que já não acreditava que as funções corporais e as preocupações matérias deviam ser escondidas.

10
A localização das atividades humanas

Em bora a distinção entre o privado e o público coincida com a oposição entre a necessidade e a liberdade, entre a futilidade e a permanência e, finalmente, entre a vergonha e a honra, não é de forma alguma verdadeiro que somente o necessário, o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar adequado no domínio privado. O significado mais elementar dos dois domínios indica que há coisas que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas em público para que possam adquirir alguma forma de existência.

p. 91

[...] Quando a bondade aparece abertamente já não é bondade, embora possa ainda ser útil como caridade organizada ou como um ato de solidariedade.

p. 92
O amor à sabedoria e o amor à bondade, caso se resolvam nas atividades de filosofar e de realizar boas obras, têm em comum o fato de que cessam imediatamente, - cancelam-se, por assim dizer – sempre que se presume que o homem pode ser sábio ou ser bom.

p. 93
Estar em solitude significa estar consigo mesmo; e, portanto, o ato de pensar, embora possa ser a mais solitária das atividades, nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia.

[...] O filósofo sempre pode contar com a companhia dos pensamentos, ao passo que as boas ações não podem ser companhia para ninguém; devem ser esquecidas no instante [...]

p. 94
[...] o ato de pensar, por poder ser lembrado, pode cristalizar-se em pensamentos, e os pensamentos, como todas as coisas que devem sua existência à recordação, podem ser transformados em objetos tangíveis que, como a página escrita ou o livro impresso, se tornam parte do artifício humano. As boas obras, por deverem ser imediatamente esquecidas, jamais podem tornar-se parte do mundo; vêm e vão sem deixar vestígios. Elas realmente não são deste mundo.

Em certo sentido, portanto, a bondade e o desamparo têm muito mais relevância para a política que a sabedoria e a solitude; mas, somente a solitude pode constituir um autêntico modo de vida, na figura do filósofo, ao passo que a experiência muito mais geral do desamparo está em tal contradição com a condição humana da pluralidade que simplesmente não pode ser suportada durante muito tempo [...]

p. 95
Como um modo consistente de vida, a bondade, portanto, não é apenas impossível nos confins do domínio público, mas é até destruidora dele.

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