Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844 – 1900. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é (autobiografia) Porto Alegre: L & PM, 2002. 208 p.; 17 cm
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Derribar
ídolos (a minha palavra para
“ideais”) – 1 isso sim é que faz parte de meu ofício. A
realidade foi despojada de seu valor, de seu sentido, de sua
veracidade justamente no mesmo grau em que foi falsificado
um mundo ideal... O “mundo verdadeiro” e o “mundo aparente” –
em alemão: o mundo falsificado
e a realidade... A mentira
do ideal foi, até agora, a blasfêmia contra a realidade; a própria
humanidade foi enganada por ela e tornou-se falsa até o mais baixo
de seus instintos – a ponto de adorar os valores inversos
como se fossem aqueles com os quais ela poderia garantir para si a
prosperidade, o futuro, o direito
altivo ao futuro.
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A
filosofia, assim como a entendi até agora, é a vida espontânea no
gelo e nas montanhas mais altas – a procura de tudo que é estranho
e duvidoso na existência, de tudo aquilo que até agora foi
excomungado pela moral.
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Quanta
é a verdade que um espírito humano suporta,
quanta é a verdade que ele ousa?
Essa foi, para mim, e cada vez mais, a tábua para medir valores.
Engano ( - a crença no ideal - ) não é cegueira, engano é
covardia...Toda
conquista, todo passo adiante no conhecimento é conseqüência
da coragem, da dureza em relação a
si mesmo...Eu não refuto os ideais, eu apenas visto luvas diante
deles...Nitimur in vetitum:
4 é sob esse signo que a minha filosofia sai vitoriosa, pois até
agora sempre foi proibida fundamentalmente apenas a verdade...
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(...)
Pois é preciso que se dê atenção a isso: os anos em que minha
vitalidade foi mais débil foram os anos em que deixei
de ser pessimista: o instinto do
auto-reestabelecimento me proibiu
uma filosofia da miséria e do desanimo... E é nisso que se
reconhece, no fundo, a vida-que-deu-certo!
No fato de um homem bem educado fazer bem aos nossos sentidos: no
fato de ele ser talhado em uma madeira que é dura, suave e cheirosa
ao mesmo tempo. A ele só faz gosto o que lhe é salutar; seu prazer,
seu desejo acabam lá onde as fronteiras do salutar passam a estar em
perigo. Ele adivinha meios curativos contra lesões, ele aproveita
acasos desagradáveis em seu próprio favor; o que não acaba com
ele, fortalece-o. Ele acumula por instinto tudo aquilo que vê, ouve
e experimenta à sua soma:
ele é um princípio selecionador, ele reprova muito. Ele está
sempre em sua
própria companhia, mesmo que esteja em contato com livros, pessoas
ou paisagens: ele honra pelo ato de selecionar,
pelo ato de permitir,
pelo ato de confiar.
A todo o tipo de estímulo ele reage lentamente, com aquela lentidão
que uma longa cautela e um orgulho desejado inculcaram nele – ele
testa o estímulo que se aproxima; ele está longe de ir ao encontro
dele. Ele não acredita nem no “infortúnio” nem na “culpa”:
ele se dá conta de si mesmo e dos outros; ele sabe esquecer...Ele
é forte o suficiente a ponto de fazer com que tudo tenha
de vir para o seu bem...Vá lá, eu sou o antípoda
de um décadent:
pois acabei de descrever a mim mesmo.
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Para
mim o “amor ao próximo” é nada mais que uma fraqueza, um caso
isolado que demonstra a incapacidade de opor resistência a um
estímulo – a piedade
é uma virtude apenas entre os décadents.
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O
meu método de desforra consiste em mandar, o mais rápido possível,
uma atitude inteligente atrás de uma burrice: assim, talvez a mesma
ainda possa ser alcançada. Para falar numa comparação: eu mando um
pote de confeites para me livrar de uma história
azeda... Basta que me façam algo de
mau, que eu vou à “desforra” por causa disso, isso é certo: em
pouco tempo encontro uma oportunidade de expressar meu agradecimento
ao “malfeitor” (inclusive agradecendo-lhe o mal-feito) – ou de
pedir
algo a ele, o que pode ser mais cortês do que dar alguma coisa... A
carta mais grosseira, ainda é mais bondosa, mais honesta do que o
silêncio. Àqueles que silenciam quase sempre lhes falta algo em
fineza e polidez de coração; silenciar é uma falta objeção;
engolir sapos faz, irremediavelmente, um mau caráter – e inclusive
estraga o estômago... Todos aqueles que silenciam são dispépticos.
– Vede bem, eu não pretendo ver a grosseria sendo desprezada, ela
é, de longe, a forma mais humana
da objeção e, em meio à suavização moderna, uma de nossas
maiores virtudes. Se a gente é rico o suficiente, é até mesmo uma
ventura não ter razão. Um deus, que viesse à terra, por certo não
haveria de fazer
nada a não ser injustiças – tomar não o castigo, mas sim a
culpa sobre as costas, isso é que
seria divino.
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38 – linha 12
(...)
Porque a gente se consumiria com demasiada rapidez, caso
reagisse, a gente passa a não reagir mais: essa é alógica. E nada
é capaz de nos haurir de modo mais rápido do que as emoções da
mágoa. O desgosto, a suscetibilidade doentia, a impotência para a
vingança, o desejo, a sede de vingança, o ato de mexer nos venenos
da alma em todos os sentidos – por certo é, para os esgotados, a
pior maneira de reagir: um consumo rápido da força nervosa, uma
elevação doentia de desejos nefastos, por exemplo da bílis do
estômago, são condicionados por essas coisas. A mágoa, o
ressentimento, é proibido em si
para os enfermos – sua
propensão malévola, mas, lamente-se, também a sua propensão mais
natural. Tudo isso já foi compreendido por aquele psicólogo
profundo: Buda. Sua “religião”, que poderia ser melhor
classificada como uma higiene, a
fim de não mistura-la a coisas tão altamente dignas de pena como o
cristianismo, fazia seus efeitos dependerem do triunfo sobre o
ressentimento: libertar a alma disso
– eis o primeiro passo para o
restabelecimento. “Não é através da hostilidade que se põe um
fim à hostilidade, é através da amizade que se põe um fim à
hostilidade”: é isso que está no princípio dos ensinamentos de
Buda – e assim não
fala a moral, assim fala a psicologia. O ressentimento, nascido da
fraqueza, não é prejudicial a ninguém mais do que o próprio fraco
– no caso inverso, em que uma natureza rica é o pressuposto, ele é
um sentimento desnecessário,
um sentimento que, dominado, já concede, por assim dizer, a prova da
riqueza de quem o domina.
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(...)
o pháthos
3 agressivo faz
parte, necessariamente, da força, assim como os sentimentos da
vingança e da revanche fazem parte da fraqueza. A mulher, por
exemplo, é vingativa: isso é condicionado por sua fraqueza tanto
quanto pelo seu interesse pela penúria alheia. – A força daquele
que ataca tem na resistência, que ele necessita, uma espécie de
medida;
todo crescimento se revela na procura de um inimigo – ou de um
problema – poderoso: pois o filósofo que é guerreiro também
desafia os problemas a duelar com ele. A tarefa não
é, absolutamente, se tornar senhor sobre as resistências comuns,
mas sim sobre aquelas que exigem que a gente acione toda a força,
toda a flexibilidade e a maestria nas armas – subjugar inimigos
iguais...Igualdade
ante o inimigo – o primeiro pressuposto de um duelo honesto.
Onde a gente despreza, não se pode fazer guerra; onde a gente
ordena, onde a gente vê alguma coisa abaixo
de si, não se pode fazer guerra. – Minha práxis na guerra pode
ser resumida em quatro sentenças. Primeiro: eu apenas ataco coisas
que são vitoriosas – caso for necessário eu espero até que elas
sejam vitoriosas. Segundo: eu apenas ataco coisas as quais jamais
encontraria aliados, contra as quais tenho de me virar sozinho –
contra as quais tenho de me compreender sozinho...Jamais dei um passo
em público que não comprometesse: é esse o meu
critério de ação correta. Terceiro: eu jamais ataco pessoas – eu
apenas me sirvo da pessoa como uma poderosa lente de aumento, através
da qual é possível tornar manifesta uma situação de necessidade
comum, mas furtiva e pouco tangível.
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(...)
minha humanidade não
consiste em sentir junto com a pessoa como ela é, mas sim em
suportar
o fato de senti-la...
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A
gente perde mui facilmente o olhar correto
para aquilo que a gente fez quando o desfecho é ruim: um sentimento
de culpa me parece uma espécie de “olhar maldoso”.
Guardar na honra aquilo que acaba dando errado, tanto mais pelo
fato de ter dado errado – isso
está bem mais perto de fazer parte da minha moral...
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(...)
Sentar
o menos possível; não acreditar em nenhum pensamento que não tenha
nascido ao ar livre e em livre movimentação – quando também os
músculos estiverem participando da festa. Todos os preconceitos vêm
das vísceras...A vida sobre as nádegas – eu já disse uma vez –
é que é o verdadeiro pecado
contra o espírito santo...
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A
influência climática sobre o metabolismo,
sua redução e seu aumento, vai tão longe que uma escolha errada no
que diz respeito ao lugar e ao clima pode não apenas alienar alguém
de sua tarefa, como também chegar ao ponto de evitar que ele chegue
até ela: e então ele jamais fica cara a cara com ela.
(...)
A velocidade do metabolismo está intimamente ligada à capacidade de
movimento ou à capenguice dos pés
do espírito; o próprio “espírito” na verdade não passa de uma
forma desse metabolismo.
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A
gente tem que sair do caminho do acaso, do estímulo externo tão
rápido quanto for possível: uma espécie de
construir-um-muro-em-volta-de-si-mesmo faz parte das primeiras
sagacidades instintivas da gravidez espiritual. Haverei de permitir
que um pensamento estranho
escale em segredo o muro?...Isso significa ler...Ao tempo do trabalho
e da frutificação segue o tempo do recreio: vinde, pois, vós, os
livros agradáveis, espirituosos e argutos!
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O
grande poeta bebe apenas
de sua própria realidade (...)
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Uma
outra mostra de inteligência e autodefesa consiste em reagir
tão raramente quanto possível e em
evitar lugares e condições nas quais se estaria condenado a
suspender de imediato sua “liberdade”, sua iniciativa, para se
tornar um simples reagente. Eu tomo a relação com os livros como
parâmetro comparativo. O erudito, que no fundo apenas se limita a
“moer” livros – o filólogo de atividade mediana, cerca de
duzentos por dia -, ao fim das contas acaba perdendo por completo a
capacidade de pensar por si mesmo. Quando ele não mói, ele não é
capaz de pensar. Ele responde a um estímulo (um pensamento lido)
quando ele pensa...ao fim e ao cabo ele apenas reage. O erudito gasta
toda sua força em dizer sim e não, na crítica do já pensado –
ele mesmo não pensa mais... O instinto da autodefesa tornou-se
frouxo nele; pois se assim não fosse ele iria se precaver contra os
livros.
(...)
Ler um livro
de manhã bem cedo, ao nascer do dia, em todo o frescor, na aurora de
suas forças – isso eu chamo de vicioso!...
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Expressado
moralmente: amor ao próximo, viver para os outros e outras coisas
pode
ser a medida de defesa para a manutenção do mais duro dos
egocentrismos.
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Aquilo
que a humanidade ponderou seriamente até o presente momento nem
sequer são realidades, são puras ilusões, ou, para dize-lo de um
modo mais duro, mentiras
advindas dos instintos ruins de naturezas enfermas, prejudiciais no
mais profundo dos sentidos – toda essa série de noções: “Deus”,
“alma”, “virtude”, “pecado”, “além”, “verdade”,
“vida eterna”... Mas nelas se procurou a grandeza da natureza
humana, seu “caráter divino” – todas as questões relativas à
política, à ordem social, à educação são, por isso,
falsificados até a raiz, de modo que foram tomados por grandes os
homens mais perniciosos... De modo que se ensinou a desprezar as
“pequenas” coisas, quero dizer, as questões fundamentais da
vida...
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75
Para
aquilo que a gente não alcança através da vivência, a gente
também não tem ouvidos.
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A
gente não deve jamais poupar a si mesmo.
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Comunicar
um estado, uma tensão interna de páthos
(3) através de sinais, incluída a
velocidade desses sinais – esse é o sentido de todo o estilo.
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90
(...)
precisamente tão longe quanto a coragem pode
ousar adiantar-se é o que determina a medida das forças comas quais
a gente se aproxima da verdade. O discernimento, o dizer-sim à
realidade é, para o forte, uma necessidade tão grande quanto a
covardia e a fuga
da realidade – o “ideal” – o é para o fraco, subjugado sob a
inspiração da fraqueza... (...) os décadents
têm necessidade
da mentira; a mentira é uma das condições de sua conservação...
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114
Que
sentido têm aqueles conceitos mentirosos, os conceitos auxiliares
da moral, da “alma”, do “espírito”, do “livre-arbítrio”,
de “Deus”, se não o de arruinar fisiologicamente a
humanidade?...Quando se desvia a seriedade da autoconservação, da
fortificação do corpo, quer dizer,
da vida, quando se faz da anemia um
ideal, quando se constrói “a salvação da alma” sobre o
desprezo ao corpo, o que é isso se não uma receita
para a décadence?
– A perda do equilíbrio, a resistência contra os instintos
naturais, em uma palavra, a “ausênsia-de-si” – tudo isso foi
chamado de moral
até agora...
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161
Homens
bons jamais falam a verdade. Falsos portos e certezas ensinaram-vos
os bons; nas mentiras dos bons fostes nascidos e mantidos. Tudo foi
distorcido e mentido até o âmago pelos bons.
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162
Se
a falsidade reivindica a toda custa a palavra “verdade” para a
sua ótica, o verdadeiro de fato deverá ser encontrado sob os piores
nomes.
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