sábado, 25 de maio de 2013

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, 1844 – 1900 Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é (autobiografia)





Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844 – 1900. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é (autobiografia) Porto Alegre: L & PM, 2002. 208 p.; 17 cm

Pág 17 – linha 15

Derribar ídolos (a minha palavra para “ideais”) – 1 isso sim é que faz parte de meu ofício. A realidade foi despojada de seu valor, de seu sentido, de sua veracidade justamente no mesmo grau em que foi falsificado um mundo ideal... O “mundo verdadeiro” e o “mundo aparente” – em alemão: o mundo falsificado e a realidade... A mentira do ideal foi, até agora, a blasfêmia contra a realidade; a própria humanidade foi enganada por ela e tornou-se falsa até o mais baixo de seus instintos – a ponto de adorar os valores inversos como se fossem aqueles com os quais ela poderia garantir para si a prosperidade, o futuro, o direito altivo ao futuro.


Pág. 18 – linha 16
A filosofia, assim como a entendi até agora, é a vida espontânea no gelo e nas montanhas mais altas – a procura de tudo que é estranho e duvidoso na existência, de tudo aquilo que até agora foi excomungado pela moral.


Pág 18 – linha26
Quanta é a verdade que um espírito humano suporta, quanta é a verdade que ele ousa? Essa foi, para mim, e cada vez mais, a tábua para medir valores. Engano ( - a crença no ideal - ) não é cegueira, engano é covardia...Toda conquista, todo passo adiante no conhecimento é conseqüência da coragem, da dureza em relação a si mesmo...Eu não refuto os ideais, eu apenas visto luvas diante deles...Nitimur in vetitum: 4 é sob esse signo que a minha filosofia sai vitoriosa, pois até agora sempre foi proibida fundamentalmente apenas a verdade...


Pág. 27 – linha 2
(...) Pois é preciso que se dê atenção a isso: os anos em que minha vitalidade foi mais débil foram os anos em que deixei de ser pessimista: o instinto do auto-reestabelecimento me proibiu uma filosofia da miséria e do desanimo... E é nisso que se reconhece, no fundo, a vida-que-deu-certo! No fato de um homem bem educado fazer bem aos nossos sentidos: no fato de ele ser talhado em uma madeira que é dura, suave e cheirosa ao mesmo tempo. A ele só faz gosto o que lhe é salutar; seu prazer, seu desejo acabam lá onde as fronteiras do salutar passam a estar em perigo. Ele adivinha meios curativos contra lesões, ele aproveita acasos desagradáveis em seu próprio favor; o que não acaba com ele, fortalece-o. Ele acumula por instinto tudo aquilo que vê, ouve e experimenta à sua soma: ele é um princípio selecionador, ele reprova muito. Ele está sempre em sua própria companhia, mesmo que esteja em contato com livros, pessoas ou paisagens: ele honra pelo ato de selecionar, pelo ato de permitir, pelo ato de confiar. A todo o tipo de estímulo ele reage lentamente, com aquela lentidão que uma longa cautela e um orgulho desejado inculcaram nele – ele testa o estímulo que se aproxima; ele está longe de ir ao encontro dele. Ele não acredita nem no “infortúnio” nem na “culpa”: ele se dá conta de si mesmo e dos outros; ele sabe esquecer...Ele é forte o suficiente a ponto de fazer com que tudo tenha de vir para o seu bem...Vá lá, eu sou o antípoda de um décadent: pois acabei de descrever a mim mesmo.


Pág. 35 – linha 11
Para mim o “amor ao próximo” é nada mais que uma fraqueza, um caso isolado que demonstra a incapacidade de opor resistência a um estímulo – a piedade é uma virtude apenas entre os décadents.


Pág 36 – linha 15
O meu método de desforra consiste em mandar, o mais rápido possível, uma atitude inteligente atrás de uma burrice: assim, talvez a mesma ainda possa ser alcançada. Para falar numa comparação: eu mando um pote de confeites para me livrar de uma história azeda... Basta que me façam algo de mau, que eu vou à “desforra” por causa disso, isso é certo: em pouco tempo encontro uma oportunidade de expressar meu agradecimento ao “malfeitor” (inclusive agradecendo-lhe o mal-feito) – ou de pedir algo a ele, o que pode ser mais cortês do que dar alguma coisa... A carta mais grosseira, ainda é mais bondosa, mais honesta do que o silêncio. Àqueles que silenciam quase sempre lhes falta algo em fineza e polidez de coração; silenciar é uma falta objeção; engolir sapos faz, irremediavelmente, um mau caráter – e inclusive estraga o estômago... Todos aqueles que silenciam são dispépticos. – Vede bem, eu não pretendo ver a grosseria sendo desprezada, ela é, de longe, a forma mais humana da objeção e, em meio à suavização moderna, uma de nossas maiores virtudes. Se a gente é rico o suficiente, é até mesmo uma ventura não ter razão. Um deus, que viesse à terra, por certo não haveria de fazer nada a não ser injustiças – tomar não o castigo, mas sim a culpa sobre as costas, isso é que seria divino.


Pág 38 – linha 12
(...) Porque a gente se consumiria com demasiada rapidez, caso reagisse, a gente passa a não reagir mais: essa é alógica. E nada é capaz de nos haurir de modo mais rápido do que as emoções da mágoa. O desgosto, a suscetibilidade doentia, a impotência para a vingança, o desejo, a sede de vingança, o ato de mexer nos venenos da alma em todos os sentidos – por certo é, para os esgotados, a pior maneira de reagir: um consumo rápido da força nervosa, uma elevação doentia de desejos nefastos, por exemplo da bílis do estômago, são condicionados por essas coisas. A mágoa, o ressentimento, é proibido em si para os enfermos – sua propensão malévola, mas, lamente-se, também a sua propensão mais natural. Tudo isso já foi compreendido por aquele psicólogo profundo: Buda. Sua “religião”, que poderia ser melhor classificada como uma higiene, a fim de não mistura-la a coisas tão altamente dignas de pena como o cristianismo, fazia seus efeitos dependerem do triunfo sobre o ressentimento: libertar a alma disso – eis o primeiro passo para o restabelecimento. “Não é através da hostilidade que se põe um fim à hostilidade, é através da amizade que se põe um fim à hostilidade”: é isso que está no princípio dos ensinamentos de Buda – e assim não fala a moral, assim fala a psicologia. O ressentimento, nascido da fraqueza, não é prejudicial a ninguém mais do que o próprio fraco – no caso inverso, em que uma natureza rica é o pressuposto, ele é um sentimento desnecessário, um sentimento que, dominado, já concede, por assim dizer, a prova da riqueza de quem o domina.


Pág 40
(...) o pháthos 3 agressivo faz parte, necessariamente, da força, assim como os sentimentos da vingança e da revanche fazem parte da fraqueza. A mulher, por exemplo, é vingativa: isso é condicionado por sua fraqueza tanto quanto pelo seu interesse pela penúria alheia. – A força daquele que ataca tem na resistência, que ele necessita, uma espécie de medida; todo crescimento se revela na procura de um inimigo – ou de um problema – poderoso: pois o filósofo que é guerreiro também desafia os problemas a duelar com ele. A tarefa não é, absolutamente, se tornar senhor sobre as resistências comuns, mas sim sobre aquelas que exigem que a gente acione toda a força, toda a flexibilidade e a maestria nas armas – subjugar inimigos iguais...Igualdade ante o inimigo – o primeiro pressuposto de um duelo honesto. Onde a gente despreza, não se pode fazer guerra; onde a gente ordena, onde a gente vê alguma coisa abaixo de si, não se pode fazer guerra. – Minha práxis na guerra pode ser resumida em quatro sentenças. Primeiro: eu apenas ataco coisas que são vitoriosas – caso for necessário eu espero até que elas sejam vitoriosas. Segundo: eu apenas ataco coisas as quais jamais encontraria aliados, contra as quais tenho de me virar sozinho – contra as quais tenho de me compreender sozinho...Jamais dei um passo em público que não comprometesse: é esse o meu critério de ação correta. Terceiro: eu jamais ataco pessoas – eu apenas me sirvo da pessoa como uma poderosa lente de aumento, através da qual é possível tornar manifesta uma situação de necessidade comum, mas furtiva e pouco tangível.


Pág 42
(...) minha humanidade não consiste em sentir junto com a pessoa como ela é, mas sim em suportar o fato de senti-la...


Pág 45
A gente perde mui facilmente o olhar correto para aquilo que a gente fez quando o desfecho é ruim: um sentimento de culpa me parece uma espécie de “olhar maldoso”. Guardar na honra aquilo que acaba dando errado, tanto mais pelo fato de ter dado errado – isso está bem mais perto de fazer parte da minha moral...


Pág 50
(...) Sentar o menos possível; não acreditar em nenhum pensamento que não tenha nascido ao ar livre e em livre movimentação – quando também os músculos estiverem participando da festa. Todos os preconceitos vêm das vísceras...A vida sobre as nádegas – eu já disse uma vez – é que é o verdadeiro pecado contra o espírito santo...


Pág 51
A influência climática sobre o metabolismo, sua redução e seu aumento, vai tão longe que uma escolha errada no que diz respeito ao lugar e ao clima pode não apenas alienar alguém de sua tarefa, como também chegar ao ponto de evitar que ele chegue até ela: e então ele jamais fica cara a cara com ela.
(...) A velocidade do metabolismo está intimamente ligada à capacidade de movimento ou à capenguice dos pés do espírito; o próprio “espírito” na verdade não passa de uma forma desse metabolismo.


Pág. 54
A gente tem que sair do caminho do acaso, do estímulo externo tão rápido quanto for possível: uma espécie de construir-um-muro-em-volta-de-si-mesmo faz parte das primeiras sagacidades instintivas da gravidez espiritual. Haverei de permitir que um pensamento estranho escale em segredo o muro?...Isso significa ler...Ao tempo do trabalho e da frutificação segue o tempo do recreio: vinde, pois, vós, os livros agradáveis, espirituosos e argutos!


Pág. 58
O grande poeta bebe apenas de sua própria realidade (...)


Pág. 65
Uma outra mostra de inteligência e autodefesa consiste em reagir tão raramente quanto possível e em evitar lugares e condições nas quais se estaria condenado a suspender de imediato sua “liberdade”, sua iniciativa, para se tornar um simples reagente. Eu tomo a relação com os livros como parâmetro comparativo. O erudito, que no fundo apenas se limita a “moer” livros – o filólogo de atividade mediana, cerca de duzentos por dia -, ao fim das contas acaba perdendo por completo a capacidade de pensar por si mesmo. Quando ele não mói, ele não é capaz de pensar. Ele responde a um estímulo (um pensamento lido) quando ele pensa...ao fim e ao cabo ele apenas reage. O erudito gasta toda sua força em dizer sim e não, na crítica do já pensado – ele mesmo não pensa mais... O instinto da autodefesa tornou-se frouxo nele; pois se assim não fosse ele iria se precaver contra os livros.
(...) Ler um livro de manhã bem cedo, ao nascer do dia, em todo o frescor, na aurora de suas forças – isso eu chamo de vicioso!...


Pág. 67
Expressado moralmente: amor ao próximo, viver para os outros e outras coisas pode ser a medida de defesa para a manutenção do mais duro dos egocentrismos.


Pág. 69
Aquilo que a humanidade ponderou seriamente até o presente momento nem sequer são realidades, são puras ilusões, ou, para dize-lo de um modo mais duro, mentiras advindas dos instintos ruins de naturezas enfermas, prejudiciais no mais profundo dos sentidos – toda essa série de noções: “Deus”, “alma”, “virtude”, “pecado”, “além”, “verdade”, “vida eterna”... Mas nelas se procurou a grandeza da natureza humana, seu “caráter divino” – todas as questões relativas à política, à ordem social, à educação são, por isso, falsificados até a raiz, de modo que foram tomados por grandes os homens mais perniciosos... De modo que se ensinou a desprezar as “pequenas” coisas, quero dizer, as questões fundamentais da vida...


Pág. 75
Para aquilo que a gente não alcança através da vivência, a gente também não tem ouvidos.


Pág. 80
A gente não deve jamais poupar a si mesmo.

Pág. 81
Comunicar um estado, uma tensão interna de páthos (3) através de sinais, incluída a velocidade desses sinais – esse é o sentido de todo o estilo.


Pág. 90
(...) precisamente tão longe quanto a coragem pode ousar adiantar-se é o que determina a medida das forças comas quais a gente se aproxima da verdade. O discernimento, o dizer-sim à realidade é, para o forte, uma necessidade tão grande quanto a covardia e a fuga da realidade – o “ideal” – o é para o fraco, subjugado sob a inspiração da fraqueza... (...) os décadents têm necessidade da mentira; a mentira é uma das condições de sua conservação...

Pág. 114
Que sentido têm aqueles conceitos mentirosos, os conceitos auxiliares da moral, da “alma”, do “espírito”, do “livre-arbítrio”, de “Deus”, se não o de arruinar fisiologicamente a humanidade?...Quando se desvia a seriedade da autoconservação, da fortificação do corpo, quer dizer, da vida, quando se faz da anemia um ideal, quando se constrói “a salvação da alma” sobre o desprezo ao corpo, o que é isso se não uma receita para a décadence? – A perda do equilíbrio, a resistência contra os instintos naturais, em uma palavra, a “ausênsia-de-si” – tudo isso foi chamado de moral até agora...

Pág 161
Homens bons jamais falam a verdade. Falsos portos e certezas ensinaram-vos os bons; nas mentiras dos bons fostes nascidos e mantidos. Tudo foi distorcido e mentido até o âmago pelos bons.

Pág 162
Se a falsidade reivindica a toda custa a palavra “verdade” para a sua ótica, o verdadeiro de fato deverá ser encontrado sob os piores nomes.


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