DURKHEIM,
Émile. O individualismo e os
intelectuais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016.
[...]
focalizamos o estado de espírito dos “intelectuais”* e as ideias que defendem,
e não o detalhe de sua argumentação. Se eles se recusam obstinadamente a
“submeter seu entendimento à palavra de um general do exército”, tal ocorre
porque evidentemente se arrogam o direito de julgar a questão por si mesmos, ou
seja, é porque colocam sua razão acima da autoridade, e os direitos do
indivíduo lhes parecem imprescritíveis.
*a
inteligência é o meio e o fim, o instrumento e o objetivo.
[...]
os espíritos se dividiram antes sobre uma questão de princípios do que sobre
uma questão de fato.
[...]
o individualismo, confundem-no com o utilitarismo estreito e com o egoísmo
utilitário de Spencer e dos economistas. Isso significa facilitar a questão.
Com efeito, é tão fácil denunciar como sendo um ideal sem grandeza esse
mercantilismo mesquinho que reduz a sociedade a não ser mais do que um vasto
aparelho de produção e de troca, pois está bastante claro que toda vida comum
seria impossível se não existissem interesses superiores aos interesses
individuais.
Acredita-se,
é verdade, atingir esse individualismo sob a forma de seu primeiro sentido, mas
ele difere profundamente daquele e as críticas que se aplicam a um não podem
servir ao outro. Longe de fazer do interesse pessoal o objetivo da conduta, ele
enxerga em qualquer motivação pessoal a própria fonte do mal.
[...]
minha ação é má quando encontra justificativa apenas em minha sorte ou em minha
condição social, em meus interesses de classe ou de casta, me minhas paixões
etc.
[...]
ela constitui uma espécie de média impessoal da qual todas as considerações
individuais são eliminadas, uma vez que as divergências e mesmo os antagonismos
se neutralizam e se anulam mutuamente.
[...]
o dever consiste em desviar nossos olhares daquilo que nos diz respeito
pessoalmente e de tudo aquilo que se liga à nossa individualidade empírica,
para buscar apenas o que advém de nossa condição humana e que partilhamos com
nossos semelhantes.
A
pessoa humana, cuja definição é como a pedra de toque por meio da qual o bem se
distingue do mal, é considerada sagrada por assim dizer, no sentido ritual do
termo.
Qualquer
um que atente contra a vida de um homem, sua liberdade ou sua honra,
provoca-nos um sentimento de horror, exatamente análogo àquele que experimenta
o crente que vê seu ídolo ser profanado. Tal moral não é simplesmente uma
disciplina higiênica ou uma sensata economia da existência, mas uma religião em
que o homem é, ao mesmo tempo, o fiel e o Deus.
Contudo, essa religião é
individualista, pois o homem é seu objeto, e o homem por definição é um
indivíduo.
[...]
o indivíduo aí está colocado no nível das coisas sacrossantas [...]
Não há
razão de Estado que possa desculpar um atentado contra a pessoa quando os
direitos da pessoa estão acima do Estado.
[...]
o liberalismo do século XVIII que, no fundo, é o objeto do litígio, não é
simplesmente uma teoria de gabinete ou uma construção filosófica, uma vez que
se transportou aos fatos, penetrou nas instituições e nos costumes, entrou
totalmente em nossa vida.
Ninguém
insistiu tanto quanto Kant no caráter supraindividual da moral e do direito.
[...] ele colocou na base de sua moral um ato irracional de fé e de submissão.
Essa
religião da humanidade tem tudo o que é preciso para falar a seus fiéis em um
tom não menos imperativo que as religiões que [ela] substitui.
[...]
se a dignidade do indivíduo tivesse origem em suas características individuais
ou em particularidades que o distinguem de outrem, poder-se-ia temer que ela o
confinasse em uma espécie de egoísmo moral que tornaria impossível qualquer
solidariedade.
É a
humanidade que é respeitável e sagrada, mas ela não está exclusivamente nele,
pois está espalhada por todos seus semelhantes. Por conseguinte, ele não pode
toma-la como objetivo de seu comportamento sem ser obrigado a sair de si mesmo
e expandir-se. O culto de que ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o agente, não
se dirige ao ser particular que ele é e que carrega seu nome, massa à pessoa
humana, esteja onde estiver e seja qual for a forma em que se encarne
Ora,
tudo o que é preciso às sociedades para serem coerentes é que seus membros
tenham os olhos fixos em um mesmo objetivo e se encontrem numa mesma fé.
O que
move não é o egoísmo, mas a simpatia por tudo que é humano, uma maior piedade
por todas as dores e por todas as misérias humanas, bem como uma necessidade
ardente de combatê-las e de atenuá-las e, enfim, uma maior sede de justiça.
Esse
culto do homem tem como primeiro dogma a autonomia da razão e como o primeiro
rito o livre exame.
Tal é o argumento, sempre rejeitado e sempre
renascido, que os eternos adversários da razão retomam periodicamente, e com
uma perseverança que coisa alguma faz esmorecer, todas as vezes que um cansaço
passageiro do individualismo não caminha sem certo intelectualismo, pois a
liberdade do pensamento é a primeira das liberdades.
Tudo o
que é necessário são apenas razões para que minha razão se incline diante da de
outro. O respeito pela autoridade nada tem de incompatível com o racionalismo
desde que a autoridade esteja racionalmente fundamentada.
[...]
não é porque, na qualidade de químicos ou de filólogos, de filósofos ou de
historiadores, eles se atribuem certos privilégios especiais e um direito
superior de fiscalizar a coisa julgada. Mas é que, como homens, eles pretendem
exercer todo seu direito de homens e salvaguardar para si um caso que depende
exclusivamente da razão. É verdade que eles se mostram mais zelosos desse
direito que o restante da sociedade; isso significa muito para eles.
Acostumados, pela prática do método científico, a suspender seu julgamento até
que se sintam esclarecidos, é natural que não cedam facilmente aos impulsos da
multidão e ao prestígio da autoridade.
[...]
uma religião não implica necessariamente símbolos e ritos propriamente ditos,
nem templos ou padres; todo este aparato exterior não é mais do que a parte
superficial. Essencialmente, ela não é outra coisa que um conjunto de crenças e
de práticas coletivas oriundas de uma autoridade particular.
Essa
ideia de pessoa humana, com as diferentes nuances em função da diversidade dos
temperamentos nacionais, é, portanto, a única que se mantém imutável e
impessoal, para além da corrente cambiante das opiniões particulares; e os
sentimentos que ela desperta são os únicos que se encontram mais ou menos em
todos os corações.
Eis
como o homem se tornou um deus para o homem e porque ele não pode mais, sem se
enganar, criar outros deuses.
O
próprio centro da vida moral foi assim transportado do exterior para o interior
e o indivíduo transformado em juiz soberano de seu próprio comportamento, sem
ter contas a prestar senão a ele mesmo e a seu Deus.
Um órgão
da vida pública, por mais importante que seja, não passa de um instrumento, um
meio tendo em vista um fim. Para que serve conservar com tanto cuidado o meio
se nos desligamos do fim? E que cálculo triste seria renunciar, para viver, a
tudo aquilo que constitui o valor e a dignidade da vida.
A
liberdade de pensar, de escrever e a liberdade de votar foram então colocadas
por eles no nível dos primeiros bens que se devia conquistar, e essa
emancipação foi certamente a condição necessária de todos os progressos
posteriores.
[...]
a liberdade política é um meio, e não um fim; seu valor advém da maneira como
ela é colocada em prática; se não serve para nada além de si mesma, ela não é
apenas inútil; ela se torna perigosa.
É
preciso ultrapassar os resultados conquistados, ao menos para conservá-los.
Reconheçamos
mesmo que, de uma maneira geral, a liberdade é um instrumento delicado cujo
manejo deve ser aprendido e exercitemos nossos filhos nisso [...]
[...] os
progressos necessários só são possíveis graças aos progressos efetuados. Trata-se
de utilizar a reflexão, não de lhe impor o silêncio. Somente ela pode nos
ajudar a sair das dificuldades presentes; não vemos o que poderia tomar o seu
lugar.
Uma
vez atravessada a crise, terá certamente chegada a hora de recordar os ensinamentos
da experiência, para não se cair novamente nessa inação esterilizante da qual
hoje carregamos a punição [...]
Pois,
em certa medida, o que deve tranquilizar-nos é que nossos adversários só são
fortes em virtude de nossa fraqueza. Eles não são nem apóstolos que deixam
transbordar suas cóleras ou seu entusiasmo, nem cientistas que nos trazem o
produto de suas pesquisas ou reflexões; são letrados que um tema interessante
seduziu.
[...]
que humilhação seria se, mesmo não enfrentando adversário mais forte, a razão
acabasse por ser derrotada, ainda que por pouco tempo.
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