DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de
Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
Conclusão
Crítica
da representação
[...] a diferença em si mesma parece
excluir toda relação do diferente com o diferente, relação que a tornaria
pensável. Parece que ela só se torna pensável quando domada, isto é, quando
submetida ao quádruplo grilhão da representação: a identidade do conceito, a
oposição do predicado, a analogia no juízo, a semelhança na percepção. Se há,
como foi tão bem mostrado por Foucault, um mundo clássico da representação, ele
se define por essas quatro dimensões que o medem e o coordenam.
[...]
Toda e qualquer diferença que não se
enraíze assim será desmesurada, incoordenada, inorgânica: grande demais ou
pequena demais, não só para ser pensada, mas para ser. Deixando de ser pensada,
a diferença dissipa-se no não ser. Daí se conclui que a diferença em si
permanece maldita, devendo expiar ou então ser resgatada sob as espécies da
razão que a tornam passível de ser vivida e pensada, que fazem dela o objeto de
uma representação orgânica.
P. 349
Em suma, a representação pode tornar-se
infinita, mas não adquire o poder de afirmar
a divergência e o descentramento; tem necessidade de um mundo convergente,
monocentrado: um mundo em que se está embriagado apenas na aparência, em que a
razão se faz de bêbada e canta uma ária dionisíaca, mas trata-se ainda da razão
“pura”.
p. 351
Inutilidade
da alternativa finito-infinito
[...] é essa alternativa, em geral, que
de modo algum convém à diferença, pois ela só expressa as oscilações da
representação em relação a uma identidade sempre dominante, ou, antes, as
oscilações do Idêntico em relação a uma matéria sempre rebelde, cujo excesso e
insuficiência ele ora rejeita ora integra.
p. 352
Identidade,
semelhança, oposição e analogia: como elas traem a diferença (as quatro
ilusões)
É essa vontade platônica de exorcizar o
simulacro que acarreta a submissão da diferença.
p. 352
O que é condenado no simulacro é o
estado das diferenças livres oceânicas, das distribuições nômades, das
anarquias coroadas, toda essa malignidade que contesta tanto a noção de modelo
quanto a de cópia.
p. 353
O pensamento, com efeito, se recobre com
uma “imagem” composta de postulados que desnaturam seu exercício e sua gênese.
Esses postulados culminam na posição de um sujeito pensante idêntico, como
princípio de identidade para o conceito em geral. Um deslizamento se produziu
do mundo platônico ao mundo da representação [...] . O “mesmo” da Ideia
platônica como modelo, garantido pelo bem, deu lugar à Identidade do conceito
originário, fundado no sujeito pensante. O sujeito pensante dá ao conceito seus
concomitantes subjetivos, memória, recognição, consciência de si. Mas é a visão
moral do mundo que assim se prolonga e se representa nessa identidade subjetiva
afirmada como senso comum [...] .
p. 353
Restaurar a diferença no pensamento é
desfazer esse primeiro nó que consiste em representar a diferença sob a
identidade do conceito e do sujeito pensante.
A segunda ilusão diz respeito, antes de
tudo, à subordinação da diferença à semelhança. [...] Restaurar a diferença na
intensidade, como ser do sensível, é desfazer o segundo nó que subordinava a
diferença ao semelhante na percepção e que só fazia ser sentida sob a condição
de uma assimilação do diverso tomado como matéria do conceito idêntico.
A terceira ilusão diz respeito ao
negativo e à maneira pela qual ele subordina a diferença sob a forma da
limitação bem como sob a forma da oposição.
p. 354
Vimos que as Ideias são verdadeiras
objetividades, feitas de elementos e de relações diferenciais e dotadas de um
modo específico – o “problemático”. Assim definido, o problema não designa
nenhuma ignorância no sujeito pensante, como também não expressa um conflito,
mas caracteriza objetivamente a natureza ideal como tal. [...] Dessas
afirmações, não se deve somente dizer que elas são diferentes, mas que são afirmações de diferenças, em função da
multiplicidade própria a cada Ideia. Como afirmação da diferença, a afirmação é
produzida pela positividade do problema, como posição diferencial; a afirmação
múltipla é engendrada pela multiplicidade problemática. É próprio da essência
da afirmação ser em si mesma múltipla e problemática.
p. 355
Tem-se ainda a partir daí uma
alternativa ilusória: ou o ser é positividade plena, afirmação pura, mas,
então, não há diferença, sendo o ser indiferençado; ou o ser comporta
diferenças, é Diferença, e há o não ser, um ser do negativo. Devemos dizer ao
mesmo tempo que o ser é positividade plena e afirmação pura, mas que há
(não)-ser, que é o ser do problemático, o ser dos problemas e das questões, mas
de modo algum o ser do negativo. [...] Restaurar o diferencial da Ideia e a
diferença na afirmação que dela deriva é romper esse liame injusto que
subordina a diferença ao negativo.
p. 357
A quarta ilusão é, finalmente, a
subordinação da diferença à analogia do juízo. [...] Essa distribuição da
diferença, totalmente relativa às exigências da representação, pertence
essencialmente à visão analógica. Mas essa forma de distribuição, comandada
pelas categorias, pareceu-nos trair a natureza do Ser (como conceito coletivo e
cardinal), a natureza das próprias distribuições (como distribuições nômades e
não sedentárias ou fixas) e a natureza da diferença (como diferença
individuante). Com efeito, o indivíduo só é e só é pensado como portador de
diferenças em geral, ao mesmo tempo que o próprio Ser se reparte nas formas
fixas dessas diferenças e se diz analogicamente daquilo que é.
p. 358
Mas
como elas também traem a repetição
Mas deve-0se constatar que as quatro
ilusões da representação, assim como desnaturam a diferença, também deformam a
repetição; e isto acontece, sob certos aspectos, por razões comparáveis. Em
primeiro lugar, a representação não dispõe de qualquer critério direto e
positivo para distinguir a repetição e a ordem da generalidade, semelhança ou
equivalência. Eis por que a repetição é representada como uma semelhança
perfeita ou uma igualdade extrema. Com efeito – este é o segundo ponto -, a
representação invoca a identidade do conceito tanto para explicar a repetição
quanto para compreender a diferença. A diferença é representada no conceito idêntico e, assim, reduzida
a uma diferença simplesmente conceitual. A repetição, ao contrário, é
representada fora do conceito, como
uma diferença sem conceito, mas sempre
sob o pressuposto de um conceito idêntico: assim, há repetição quando
coisas de distinguem in numero, no
espaço e no tempo, seu conceito permanecendo o mesmo. Portanto, é pelo mesmo
movimento que a identidade do conceito na representação compreende a diferença
e se estende à repetição.
p. 358
Todavia, não só essa distinção, mas
também a repetição são aqui explicadas de maneira totalmente negativa. Repete-se (a linguagem repete) porque não se é real (as palavras não são reais),
porque só há definição nominal. Repete-se
(a natureza repete) porque não se tem
interioridade (a matéria não tem interioridade), porque se é partes extra partes. Repete-se (o inconsciente repete) porque se recalca (o eu recalca), porque não se (o Isso) tem rememoração, recognição
nem consciência de si – em última análise, porque não se tem instinto, sendo
este o concomitante subjetivo da espécie como conceito. Em suma, repete-se
sempre em função do que não se é, e do que não se tem. Repete-se porque não se
ouve. [...] Na representação, as forças que asseguram a repetição, isto é, a
multiplicidade das coisas para um conceito que é absolutamente o mesmo, só
podem ser determinadas negativamente.
p. 359
[...] a multiplicação das coisas sob um
conceito absolutamente idêntico tem como consequência a divisão do conceito em
coisas absolutamente idênticas. [...]
Portanto, a repetição tem um sentido
primeiro do ponto de vista da representação, o de uma repetição material e
nua, repetição do mesmo (e não apenas
sob o mesmo conceito).
p. 360
O
fundamento como razão: seus três sentidos
Fundar é determinar. Mas em que consiste
a determinação e sobre o que ela se exerce? O fundamento é a operação do logos ou da razão suficiente. Como tal,
ele tem três sentidos. Em seu primeiro sentido, o fundamento é o Mesmo ou o
Idêntico. [...] Essa qualidade, objeto de pretensão, é a diferença [...]. A
essência, como fundamento, é o idêntico, na medida em que compreende originariamente
a diferença de seu objeto. [...] Eis por que o fundamento seleciona e faz a
diferença entre os próprios pretendentes. Cada imagem ou pretensão bem-fundada
chama-se re-presentação (ícone), pois a primeira em sua ordem é ainda a segunda
em si, em relação ao fundamento. É neste sentido que a Ideia inaugura ou funda
o mundo da representação. As imagens rebeldes e sem semelhança (simulacros) são
eliminadas, rejeitadas, denunciadas como não fundadas, falsos pretendentes.
Num
segundo sentido, uma vez instaurado o mundo da representação, o fundamento não
mais se define pelo idêntico. O idêntico tornou-se o caráter interno da própria
representação, assim como a semelhança tornou-se sua relação exterior com a
coisa. O idêntico exprime agora uma pretensão que, por sua vez, deve ser
fundada.
p. 361
Neste terceiro sentido, fundar é
representar o presente, isto é, fazer o presente advir e passar à representação
(finita ou infinita).
p. 362
Do
fundamento ao sem-fundo
Em suma, a razão suficiente, o fundamento é estranhamente curvado. Por um
lado, ele pende em direção ao que funda, em direção às formas da representação.
Mas, por outro lado, ele se orienta obliquamente e mergulha num sem-fundo, para
além do fundamento, que resiste a todas as formas e não se deixa representar.
[...]
É
que fundar é determinar o indeterminado. [...] Alguma coisa do fundo sobe à
superfície, e sobe sem tomar forma, insinuando-se entre as formas, existência
autônoma sem rosto, base informal. Na medida em que ele se encontra agora na
superfície, o fundo chama-se profundo, sem fundo. [...] É preciso que o
pensamento, como determinação pura, como linha abstrata, afronte esse sem-fundo
que é o indeterminado. Esse indeterminado, esse sem-fundo, é igualmente a
animalidade própria ao pensamento, a genitalidade do pensamento: não esta ou
aquela forma animal, mas a besteira. Com efeito, se o pensamento só pensa
coagido e forçado, se ele permanece estúpido enquanto nada o força a pensar,
aquilo que o força a pensar não será também a existência da besteira, a saber,
que ele não pensa enquanto nada o força?
p. 364
A besteira (e não o erro) constitui a
maior impotência do pensamento, mas também a fonte de seu mais elevado poder
naquilo que o força a pensar. [...] O sujeito do cogito cartesiano não pensa; ele tem apenas a possibilidade de
pensar e se mantém estúpido no seio da possibilidade. Falta-lhe a forma do
determinável; não uma especificidade, não uma forma específica informando uma
matéria, não uma memória informando um presente, mas a forma pura e vazia do
tempo. É a forma vazia do tempo que introduz, que constitui a Diferença no
pensamento, a partir da qual ele pensa, como diferença do indeterminado e da
determinação. É ela que engendra pensar no pensamento, pois o pensamento só
pensa com a diferença, em torno desse ponto de a-fundamento. É a diferença, ou
a forma do determinável, que faz com que o pensamento funcione, isto é, que faz
com que funcione a máquina inteira do indeterminado e da determinação. A teoria
do pensamento é como a pintura: tem necessidade dessa revolução que a faz
passar da representação à arte abstrata; esse é o objeto de uma teoria do
pensamento sem imagem.
p. 365
Individuações
impessoais e singularidades pré-individuais
A representação, sobretudo quando se
eleva ao infinito, é percorrida por um pressentimento do sem-fundo. Mas, por
tornar-se infinita para assumir a diferença, ela representa o sem-fundo como um
abismo totalmente indiferençado, [...]
p. 365
[...] Que o sem-fundo seja sem
diferença, quando, na verdade, elas formigam nele, é a ilusão-limite, a ilusão
exterior da representação, que resulta de todas as ilusões internas. E o que
são as Ideias, com sua multiplicidade constitutiva, senão essas formigas que
entram e saem pela rachadura do Eu?
p. 366
O
simulacro
O simulacro é o sistema em que o
diferente se refere ao diferente por meio da própria diferença. [...] O sistema
do simulacro afirma a divergência e o descentramento; a única unidade, a única
convergência de todas as séries é um caos informal que compreende todas elas.
Nenhuma série goza de um privilégio sobre a outra, nenhuma possui a identidade
de um modelo, nenhuma possui a semelhança de uma cópia. Nenhuma se opõe a outra
nem lhe é análoga. Cada uma é constituída de diferenças e se comunica com as
outras por diferenças de diferenças. As anarquias coroadas substituem as
distribuições sedentárias da representação.
p. 367
Uma singularidade é o ponto de partida
de uma série que se prolonga por todos os pontos ordinários do sistema até a
vizinhança de outra singularidade; esta engendra outra série que ora converge
para a primeira, ora diverge dela. A Ideia tem a potência de afirmar a
divergência; ela estabelece uma espécie de ressonância entre séries que
divergem.
p. 368
Teoria
das Ideias e dos problemas
Assim definida, a Ideia não tem nenhuma
atualidade. Ela é virtualidade pura.
p. 368
[...] as ressonâncias entre séries põem
em jogo as relações ideais. [...] as Ideias se atualizam nas espécies e nas
partes, nas qualidades e extensos que recobrem e desenvolvem esses campos de
individuação. [...] O conjunto do sistema, que põe em jogo a Ideia, sua
encarnação e sua atualização, deve expressar-se na noção complexa de
“(indi)-diferenci/çação”. Toda coisa
tem como que duas “metades”, ímpares, dissimétricas e dessemelhantes, as duas
metades do Símbolo, cada uma delas dividindo-se em duas: uma metade ideal, que
mergulha no virtual e é constituída, por um lado, pelas relações diferenciais
e, por outro, pelas singularidades correspondentes; uma metade atual, constituída,
por um lado, pelas qualidades que atualizam essas relações e, por outro, pelas
partes que atualizam essas singularidades. É a individuação que assegura o
encaixe das duas grandes metades não semelhantes.
p. 369
É um erro ver nos problemas um estado provisório e subjetivo, pelo qual nosso
conhecimento deveria passar em razão das suas limitações de fato. É esse erro
que libera a negação e desnatura a dialética, substituindo o (não)-ser do
problema pelo não ser no negativo. O “problemático” é um estado do mundo, uma
dimensão do sistema e até mesmo seu horizonte, seu foco: ele designa exatamente
a objetividade da Ideia, a realidade do virtual.
p. 370
Os
dois tipos de jogo: suas características
Há várias maneiras de jogar, e os jogos
humanos e coletivos não se assemelham ao jogo divino solitário. Podemos opor as
duas espécies de jogo, o humano e o ideal, segundo várias características.
Primeiramente, o jogo humano supõe regras categóricas preexistentes. Em
seguida, estas regras têm o efeito de determinar probabilidades, isto é,
“hipóteses” de perda e hipóteses de ganho. Em terceiro lugar, esses jogos nunca
afirmam todo o acaso; ao contrário, eles o fragmentam e, em cada caso, subtraem
do acaso, excetuam do acaso a consequência do lance, pois eles consignam tal
ganho ou tal perda como necessariamente ligado à hipótese. Eis por que,
finalmente, o jogo humano procede por distribuições sedentárias: com efeito, a
regra categórica prévia tem aí o papel invariante do Mesmo e goza de uma
necessidade metafísica ou moral; por esta razão, ela subsume hipóteses opostas
às quais ela faz com que corresponda uma série de lances, de jogadas, de
arremessos numericamente distintos, encarregados de operar uma distribuição
destas hipóteses; e os resultados dos lances, as reincidências, se repartem de
acordo com sua consequência, segundo uma necessidade hipotética, isto é, de
acordo com a hipótese efetuada. Eis a distribuição sedentária em que há
partilha fixa de um distribuído, segundo uma proporcionalidade fixada pela
regra. Essa maneira humana, essa falsa
maneira de jogar, não esconde seus pressupostos morais, onde a hipótese é a do
Bem e do Mal, e o jogo é um aprendizado da moralidade. [...] Esse jogo já se confunde com o
exercício da representação, apresentando todos os seus elementos: a identidade
superior do princípio, a oposição das hipóteses, a semelhança das jogadas
numericamente distintas, a proporcionalidade na relação entre a consequência e
a hipótese.
Totalmente
distinto é o jogo divino [...]
p. 373
Antes de tudo, não há regra
preexistente, pois o jogo incide sobre sua própria regra. De tal modo que, a
cada vez, todo o acaso é afirmado num lance necessariamente vencedor. [...] E
as diferentes reincidências já não se repartem de acordo com a distribuição das
hipóteses que elas efetuariam, mas elas próprias se distribuem no espaço aberto
da jogada única e não compartilhada: distribuição nômade, em vez de sedentária.
[...] Mundo da “vontade”: entre as
afirmações do acaso (questões imperativas e decisórias) e as afirmações
resultantes engendradas (casos de solução decisivos ou resoluções)
desenvolve-se toda a positividade das Ideias. O jogo do problemático e do
imperativo substitui o do hipotético e do categórico; o jogo da diferença e da
repetição substitui o do Mesmo e da representação.
p. 374
Crítica
das categorias
É vã a pretensão de que uma lista de
categorias possa ser em princípio aberta; de fato, ela pode ser, mas não em
princípio, pois as categorias pertencem ao mundo da representação, no qual
constituem formas de distribuição pelas quais o Ser se reparte entre os entes
segundo regras de proporcionalidade sedentária. Eis por que a filosofia sempre
sofreu a tentação de opor às categorias noções de uma natureza totalmente
distinta, realmente abertas, que dessem testemunho de um sentido empírico e
pluralista da Ideia: “existenciais” contra “essenciais”, perceptos contra
conceitos[...] Tais noções, que é preciso chamar “fantásticas”, na medida em
que se aplicam aos fantasmas ou simulacros, distinguem-se das categorias da
representação de vários pontos de vista. Primeiramente, elas são condições da
experiência real e não apenas da experiência possível. É mesmo neste sentido que, não sendo mais amplas do que o condicionado,
reúnem as duas partes da estética, tão infelizmente dissociadas, a teoria das
formas da experiência e da obra de arte como experimentação.
p. 375
[...] em segundo lugar, esses tipos
orientam distribuições totalmente distintas, irredutíveis e incompatíveis: às
distribuições sedentárias das categorias opõem-se as distribuições nômades
operadas pelas noções fantásticas. Estão, com efeito, nem são universais, como
as categorias, nem são hic et nunc, now here, como o diverso ao qual as
categorias se aplicam na representação.
p. 376
A
repetição, o idêntico e o negativo
É próprio da representação tomar como
modelo uma repetição material nua, que ela compreende pelo Mesmo e explica pelo
negativo. [...] Elementos idênticos só
se repetem à condição de uma independência dos “casos”, de uma descontinuidade
das “vezes” que faz com que um só apareça se o outro tiver desaparecido: na
representação, a repetição é forçada a se desfazer ao mesmo tempo que ela se faz.
Ou, antes, ela não se faz. Ela não pode se fazer nessas condições.
[...] uma diferença faz necessariamente
parte da repetição superficial da qual ela se
extrai, trata-se de saber em que consiste essa diferença. Essa diferença é
contração, mas em que consiste essa contração? Não seria ela o grau mais
contraído, o nível mais tenso de um passado que coexiste consigo em todos os
níveis de descontração e sob todos os graus? A cada instante tem-se todo o
passado, mas em graus e níveis diversos, sendo o presente apenas o mais
contraído, o mais tenso. Era essa a esplêndida hipótese bergsoniana. Então, a
diferença presente não é, como há pouco,
p. 377
uma diferença extraída de uma repetição
superficial de instantes, de maneira a esboçar uma profundidade sem a qual esta
não existiria.
A diferença já não é extraída de uma repetição elementar, mas entre os graus ou níveis de uma
repetição que é, a cada vez, total e totalizante, ela se desloca e se disfarça
de um nível a outro, e cada nível compreende suas singularidades como pontos
privilegiados que lhe são próprios. [...] eis que a própria diferença existe
entre duas repetições: entre a repetição superficial dos elementos exteriores
idênticos e instantâneos que ela contrai e a repetição profunda das totalidades
internas de um passado sempre variável da qual ela é o nível mais contraído. É
assim que a diferença tem duas faces ou que a síntese do tempo já tem dois
aspectos: um, Habitus, tensionado
para a primeira repetição que ele torna possível; outro, Mnemósina, dado à
segunda repetição da qual ela resulta.
p. 378
As
duas repetições
Portanto, é a mesma coisa dizer que a
repetição material tem um sujeito passivo e secreto, que nada faz, mas no qual
tudo se faz, e que há duas repetições, sendo a material a mais superficial.
Talvez seja inexato atribuir todas as características da outra à Memória, mesmo
que se entenda por memória a faculdade transcendental de um passado puro, tanto
inventiva quanto rememorativa. Ocorre que a memória é a primeira figura em que
aparecem as características opostas das duas repetições. Uma delas é a
repetição do mesmo e só tem diferença subtraída ou extraída; a outra é
repetição do Diferente e compreende a diferença. [...] Uma é exatidão e de mecanismo, a outra
é de seleção e de liberdade. Uma é repetição nua, que só pode ser mascarada por
acréscimo e posteriormente; a outra é repetição vestida, cujas máscaras,
deslocamentos e disfarces são os primeiros, os últimos e os únicos elementos.
p. 379
Ora, a repetição tem como potências o
deslocamento e o disfarce, do mesmo modo que a diferença tem a divergência e o
descentramento. Uma pertence tanto quanto a outra à Ideia, pois a Ideia não tem
dentro nem fora [...]. Da diferença e da repetição, a Ideia faz um mesmo problema. Há um excesso próprio
da Ideia, um exagero da Ideia, que faz da diferença e da repetição o objeto
reunido, o “simultâneo” da Ideia. É do excesso da Ideia que o conceito se
aproveita indevidamente.
p. 380
A Natureza nunca repetiria; suas
repetições seriam sempre hipotéticas, deixadas à boa vontade do experimentador
e do cientista, se ela se reduzisse à superfície da matéria, se a própria
matéria não dispusesse de uma profundidade assim como de flancos da Natureza,
onde a repetição viva e mortal se elabora, se torna imperativa e positiva, à
condição de deslocar e disfarçar uma diferença sempre presente que faz da
repetição uma evolução como tal.
p. 381
Patologia
e arte; estereotipia e refrão: a arte
como lugar de coexistência de todas as repetições
As palavras e as ações dos homens
engendram repetições materiais ou nuas, mas como efeito de repetições mais
profundas e de outra natureza [...]. A repetição é o phatos, a filosofia da repetição é a patologia. Mas há tantas
patologias quantas são as repetições intrincadas umas nas outras.
Consideremos repetições gestuais ou
linguísticas, iterações e estereotipias de tipo demencial ou esquizofrênico.
Elas não mais parecem dar testemunho de uma vontade capaz de investir um objeto
no quadro da cerimônia; elas funcionam antes como reflexos que marcam uma
falência geral do investimento (daí a impossibilidade em que se encontra o
doente de repetir à vontade nas provas a que é submetido).
P. 382
A repetição é a potência da
linguagem, e, em vez de se explicar de maneira negativa, por uma insuficiência
dos conceitos nominais, ela implica uma Ideia sempre excessiva da poesia. [...]
Assim, é em função de sua potência mais positiva e mais ideal que a linguagem
organiza todo seu sistema como repetição vestida.
p. 383
As estrofes giram em torno do refrão. E
o que melhor que um canto para reunir os conceitos nominais e os conceitos da
liberdade? É nessas condições que uma repetição nua é produzida: ao mesmo tempo
no retorno do refrão, como representante do objeto = x, e em determinados aspectos das estrofes diferençadas (medida,
rima, ou até mesmo verso rimando com o refrão) que, por sua vez, representam a
compenetração das séries. [...]
p. 384
Rumo
a uma terceira repetição, ontológica
Mas como evitar que esta profunda
repetição não seja recoberta pelas repetições nuas que ela inspira e não caia
na ilusão de um primado da repetição bruta? [...] Para além da repetição nua e
da repetição vestida, para além da repetição da qual se extrai a diferença e
daquela que a compreende, uma repetição que “faz” a diferença.
p. 384
Talvez o mais elevado objeto
da arte seja fazer com que todas essas repetições atuem simultaneamente, com
sua diferença de natureza e ritmo, seu deslocamento e seu disfarce respectivos,
sua divergência e seu descentramento, encaixá-las umas nas outras e de uma à
outra, envolve-las em ilusões cujo “efeito” varia em cada caso. A arte não
imita, mas isso acontece, antes de tudo, porque ela repete, e repete todas as
repetições, a partir de uma potência interior (a imitação é uma cópia, mas a
arte é simulacro, ela subverte as cópias em simulacros). Até mesmo a repetição
mais mecânica, mais cotidiana, mais habitual, mais estereotipada encontra seu
lugar na obra de arte, estando sempre deslocada em relação a outras repetições
com a condição de que se saiba extrair dela uma diferença para as outras
repetições. Isto porque não há outro problema estético a não ser o da inserção
da arte na vida cotidiana. Quanto mais nossa vida cotidiana aparece
padronizada, estereotipada, submetida a uma reprodução acelerada de objetos de
consumo, mais deve a arte ligar-se a ela e dela arrancar a pequena diferença
que, por outro lado e simultaneamente, atua entre outros níveis de repetição, como também fazer os
dois extremos das séries habituais de consumo ressoarem com as séries dos
instintos de destruição e de morte; juntar, assim, o quadro da crueldade ao da
besteira, descobrir sob o consumo um crispar de maxilares hebefrênico e, sob as
mais ignóbeis destruições da guerra, ainda processos de consumo, reproduzir
esteticamente as ilusões e mistificações que constituem a essência real desta
civilização, para que, finalmente, a Diferença se expresse com uma força
repetitiva de cólera, capaz de introduzir a mais estranha seleção, mesmo que
seja uma contração aqui e ali, isto é, uma liberdade para o fim de um mundo.
Cada arte tem suas técnicas de repetições imbricadas, cujo poder crítico e
revolucionário pode atingir o mais elevado ponto para nos conduzir das mornas
repetições do hábito às profundas repetições da memória e, depois, às
repetições últimas da morte, onde se decide nossa liberdade.
p. 385
[exemplo:] [...] a maneira pela qual, em
pintura, a Pop-Art soube compelir a cópia, a cópia da cópia etc., até o ponto
extremo em que ela se subverte e se torna simulacro [...]
p. 386
A
forma do tempo e as três repetições
Todas as repetições não se ordenariam na
forma pura do tempo? Esta forma pura, a linha reta, define-se, com efeito, por
uma ordem que distribui um antes, um durante e um depois, por um conjunto que recolhe os três na simultaneidade de
sua síntese a priori e por uma série
que faz com que um tipo de repetição corresponda a cada um. Desse ponto de
vista, devemos distinguir essencialmente a forma pura e os conteúdos empíricos.
Poisos conteúdos empíricos são móveis e se sucedem; as determinações a priori do tempo são, ao contrário,
fixas, estão paradas como numa foto ou num plano imóvel, coexistindo na síntese
estática que opera sua distinção em relação à imagem de uma ação formidável.
p. 386
[...] do ponto de vista da forma pura do
tempo, pois, agora, cada determinação (o primeiro, o segundo e o terceiro; o
antes o durante e o depois) já é repetição em si mesma, na forma pura do tempo
e em relação à imagem da ação. [...] A repetição já não incide
(hipoteticamente) sobre uma primeira vez que pode escapar dela, e que de todo
modo lhe permanece exterior; a repetição incide imperativamente sobre
repetições, sobre modos ou tipos de repetição. A fronteira, a “diferença”,
portanto, se deslocou singularmente: ela já não está entre a primeira vez e as
outras, entre o repetido e a repetição, mas entre os tipos de repetição. O que
se repete é apropria repetição. [...]
Como
explicar que, quando a repetição incide sobre as repetições, que, quando ela
reúne todas e introduz entre elas a diferença, ela adquire de pronto um formidável
poder de seleção? [...] De acordo com um primeiro nível, a repetição do Antes
define-se de maneira negativa e por insuficiência: repete-se porque não se sabe, porque não se recorda etc., porque não se é
capaz de ação [...]. Portanto, o “se” significa aqui o inconsciente do Isso
como primeira potência da repetição. A repetição do Durante define-se por um
devir-semelhante ou um devir-igual: tornar-se
capaz da ação, tornar-se igual à imagem da ação, sendo que agora o “se”
significa o inconsciente do Eu, sua metamorfose, sua projeção num Eu ou eu-ideal como segunda potência da
repetição. [...] Num outro nível, o herói repete a primeira, a do Antes, como
num sonho e de um modo nu, mecânico, estereotipado, que constitui o cômico;
todavia, esta repetição nada seria se já não remetesse a alguma coisa de
oculto, de disfarçado em sua própria série, capaz de nela introduzir contrações
como um Habitus hesitante em que a
outra repetição amadurece. Esta segunda repetição do Durante é aquela em que o
herói se apodera do próprio disfarce, reveste a metamorfose que lhe restitui de
um modo trágico, com sua própria identidade, as profundezas de sua memória e de
toda a memória do mundo, que ele pretende, tornando-se capaz de agir, igualar
ao tempo inteiro. Eis, portanto, que as duas repetições, neste segundo nível,
retomam e repartem à sua maneira as duas sínteses do tempo, as duas formas, nua
e vestida, que as caracterizam.
p. 388
O
que não retorna
O terno retorno afirma a diferença,
afirma a dessemelhança e o díspar, o acaso, o múltiplo e o devir. [...] são
eliminadas pelo eterno retorno precisamente as instâncias que jugulam a
diferença, que paralisam seu transporte, submetendo-o ao quádruplo jugo da
representação. A diferença só se reconquista, só se libera no extremo de sua
potência, isto é, pela repetição no eterno retorno. O eterno retorno elimina
aquilo que, tornando impossível o transporte da diferença, torna ele próprio
impossível. O que ele elimina é o Mesmo e o semelhante, o análogo e o Negativo
como pressupostos da representação.
p. 393
Analogia
do ser e representação, univocidade do ser e repetição
A
representação implica essencialmente a analogia do ser. Mas a repetição é a
única Ontologia realizada, isto é, a
univocidade do ser.
p.
397
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