segunda-feira, 22 de abril de 2019

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição.



DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

Conclusão

Crítica da representação
[...] a diferença em si mesma parece excluir toda relação do diferente com o diferente, relação que a tornaria pensável. Parece que ela só se torna pensável quando domada, isto é, quando submetida ao quádruplo grilhão da representação: a identidade do conceito, a oposição do predicado, a analogia no juízo, a semelhança na percepção. Se há, como foi tão bem mostrado por Foucault, um mundo clássico da representação, ele se define por essas quatro dimensões que o medem e o coordenam.
[...]
Toda e qualquer diferença que não se enraíze assim será desmesurada, incoordenada, inorgânica: grande demais ou pequena demais, não só para ser pensada, mas para ser. Deixando de ser pensada, a diferença dissipa-se no não ser. Daí se conclui que a diferença em si permanece maldita, devendo expiar ou então ser resgatada sob as espécies da razão que a tornam passível de ser vivida e pensada, que fazem dela o objeto de uma representação orgânica.
P. 349

Em suma, a representação pode tornar-se infinita, mas não adquire o poder de afirmar a divergência e o descentramento; tem necessidade de um mundo convergente, monocentrado: um mundo em que se está embriagado apenas na aparência, em que a razão se faz de bêbada e canta uma ária dionisíaca, mas trata-se ainda da razão “pura”.
p. 351

Inutilidade da alternativa finito-infinito
[...] é essa alternativa, em geral, que de modo algum convém à diferença, pois ela só expressa as oscilações da representação em relação a uma identidade sempre dominante, ou, antes, as oscilações do Idêntico em relação a uma matéria sempre rebelde, cujo excesso e insuficiência ele ora rejeita ora integra.
p. 352

Identidade, semelhança, oposição e analogia: como elas traem a diferença (as quatro ilusões)
É essa vontade platônica de exorcizar o simulacro que acarreta a submissão da diferença.
p. 352
O que é condenado no simulacro é o estado das diferenças livres oceânicas, das distribuições nômades, das anarquias coroadas, toda essa malignidade que contesta tanto a noção de modelo quanto a de cópia.
p. 353
O pensamento, com efeito, se recobre com uma “imagem” composta de postulados que desnaturam seu exercício e sua gênese. Esses postulados culminam na posição de um sujeito pensante idêntico, como princípio de identidade para o conceito em geral. Um deslizamento se produziu do mundo platônico ao mundo da representação [...] . O “mesmo” da Ideia platônica como modelo, garantido pelo bem, deu lugar à Identidade do conceito originário, fundado no sujeito pensante. O sujeito pensante dá ao conceito seus concomitantes subjetivos, memória, recognição, consciência de si. Mas é a visão moral do mundo que assim se prolonga e se representa nessa identidade subjetiva afirmada como senso comum [...] .
p. 353
Restaurar a diferença no pensamento é desfazer esse primeiro nó que consiste em representar a diferença sob a identidade do conceito e do sujeito pensante.
A segunda ilusão diz respeito, antes de tudo, à subordinação da diferença à semelhança. [...] Restaurar a diferença na intensidade, como ser do sensível, é desfazer o segundo nó que subordinava a diferença ao semelhante na percepção e que só fazia ser sentida sob a condição de uma assimilação do diverso tomado como matéria do conceito idêntico.
A terceira ilusão diz respeito ao negativo e à maneira pela qual ele subordina a diferença sob a forma da limitação bem como sob a forma da oposição.
p. 354
Vimos que as Ideias são verdadeiras objetividades, feitas de elementos e de relações diferenciais e dotadas de um modo específico – o “problemático”. Assim definido, o problema não designa nenhuma ignorância no sujeito pensante, como também não expressa um conflito, mas caracteriza objetivamente a natureza ideal como tal. [...] Dessas afirmações, não se deve somente dizer que elas são diferentes, mas que são afirmações de diferenças, em função da multiplicidade própria a cada Ideia. Como afirmação da diferença, a afirmação é produzida pela positividade do problema, como posição diferencial; a afirmação múltipla é engendrada pela multiplicidade problemática. É próprio da essência da afirmação ser em si mesma múltipla e problemática.
p. 355
Tem-se ainda a partir daí uma alternativa ilusória: ou o ser é positividade plena, afirmação pura, mas, então, não há diferença, sendo o ser indiferençado; ou o ser comporta diferenças, é Diferença, e há o não ser, um ser do negativo. Devemos dizer ao mesmo tempo que o ser é positividade plena e afirmação pura, mas que há (não)-ser, que é o ser do problemático, o ser dos problemas e das questões, mas de modo algum o ser do negativo. [...] Restaurar o diferencial da Ideia e a diferença na afirmação que dela deriva é romper esse liame injusto que subordina a diferença ao negativo.
p. 357

A quarta ilusão é, finalmente, a subordinação da diferença à analogia do juízo. [...] Essa distribuição da diferença, totalmente relativa às exigências da representação, pertence essencialmente à visão analógica. Mas essa forma de distribuição, comandada pelas categorias, pareceu-nos trair a natureza do Ser (como conceito coletivo e cardinal), a natureza das próprias distribuições (como distribuições nômades e não sedentárias ou fixas) e a natureza da diferença (como diferença individuante). Com efeito, o indivíduo só é e só é pensado como portador de diferenças em geral, ao mesmo tempo que o próprio Ser se reparte nas formas fixas dessas diferenças e se diz analogicamente daquilo que é.
p. 358

Mas como elas também traem a repetição
Mas deve-0se constatar que as quatro ilusões da representação, assim como desnaturam a diferença, também deformam a repetição; e isto acontece, sob certos aspectos, por razões comparáveis. Em primeiro lugar, a representação não dispõe de qualquer critério direto e positivo para distinguir a repetição e a ordem da generalidade, semelhança ou equivalência. Eis por que a repetição é representada como uma semelhança perfeita ou uma igualdade extrema. Com efeito – este é o segundo ponto -, a representação invoca a identidade do conceito tanto para explicar a repetição quanto para compreender a diferença. A diferença é representada no conceito idêntico e, assim, reduzida a uma diferença simplesmente conceitual. A repetição, ao contrário, é representada fora do conceito, como uma diferença sem conceito, mas sempre sob o pressuposto de um conceito idêntico: assim, há repetição quando coisas de distinguem in numero, no espaço e no tempo, seu conceito permanecendo o mesmo. Portanto, é pelo mesmo movimento que a identidade do conceito na representação compreende a diferença e se estende à repetição.
p. 358
Todavia, não só essa distinção, mas também a repetição são aqui explicadas de maneira totalmente negativa. Repete-se (a linguagem repete) porque não se é real (as palavras não são reais), porque só há definição nominal. Repete-se (a natureza repete) porque não se tem interioridade (a matéria não tem interioridade), porque se é partes extra partes. Repete-se (o inconsciente repete) porque se recalca (o eu recalca), porque não se (o Isso) tem rememoração, recognição nem consciência de si – em última análise, porque não se tem instinto, sendo este o concomitante subjetivo da espécie como conceito. Em suma, repete-se sempre em função do que não se é, e do que não se tem. Repete-se porque não se ouve. [...] Na representação, as forças que asseguram a repetição, isto é, a multiplicidade das coisas para um conceito que é absolutamente o mesmo, só podem ser determinadas negativamente.
p. 359
[...] a multiplicação das coisas sob um conceito absolutamente idêntico tem como consequência a divisão do conceito em coisas absolutamente idênticas.  [...] Portanto, a repetição tem um sentido primeiro do ponto de vista da representação, o de uma repetição material e nua, repetição do mesmo (e não apenas sob o mesmo conceito).
p. 360

O fundamento como razão: seus três sentidos
Fundar é determinar. Mas em que consiste a determinação e sobre o que ela se exerce? O fundamento é a operação do logos ou da razão suficiente. Como tal, ele tem três sentidos. Em seu primeiro sentido, o fundamento é o Mesmo ou o Idêntico. [...] Essa qualidade, objeto de pretensão, é a diferença [...]. A essência, como fundamento, é o idêntico, na medida em que compreende originariamente a diferença de seu objeto. [...] Eis por que o fundamento seleciona e faz a diferença entre os próprios pretendentes. Cada imagem ou pretensão bem-fundada chama-se re-presentação (ícone), pois a primeira em sua ordem é ainda a segunda em si, em relação ao fundamento. É neste sentido que a Ideia inaugura ou funda o mundo da representação. As imagens rebeldes e sem semelhança (simulacros) são eliminadas, rejeitadas, denunciadas como não fundadas, falsos pretendentes.
            Num segundo sentido, uma vez instaurado o mundo da representação, o fundamento não mais se define pelo idêntico. O idêntico tornou-se o caráter interno da própria representação, assim como a semelhança tornou-se sua relação exterior com a coisa. O idêntico exprime agora uma pretensão que, por sua vez, deve ser fundada.
p. 361
Neste terceiro sentido, fundar é representar o presente, isto é, fazer o presente advir e passar à representação (finita ou infinita).
p. 362

Do fundamento ao sem-fundo
Em suma, a razão suficiente, o fundamento é estranhamente curvado. Por um lado, ele pende em direção ao que funda, em direção às formas da representação. Mas, por outro lado, ele se orienta obliquamente e mergulha num sem-fundo, para além do fundamento, que resiste a todas as formas e não se deixa representar. [...]
            É que fundar é determinar o indeterminado. [...] Alguma coisa do fundo sobe à superfície, e sobe sem tomar forma, insinuando-se entre as formas, existência autônoma sem rosto, base informal. Na medida em que ele se encontra agora na superfície, o fundo chama-se profundo, sem fundo. [...] É preciso que o pensamento, como determinação pura, como linha abstrata, afronte esse sem-fundo que é o indeterminado. Esse indeterminado, esse sem-fundo, é igualmente a animalidade própria ao pensamento, a genitalidade do pensamento: não esta ou aquela forma animal, mas a besteira. Com efeito, se o pensamento só pensa coagido e forçado, se ele permanece estúpido enquanto nada o força a pensar, aquilo que o força a pensar não será também a existência da besteira, a saber, que ele não pensa enquanto nada o força?
p. 364
A besteira (e não o erro) constitui a maior impotência do pensamento, mas também a fonte de seu mais elevado poder naquilo que o força a pensar. [...] O sujeito do cogito cartesiano não pensa; ele tem apenas a possibilidade de pensar e se mantém estúpido no seio da possibilidade. Falta-lhe a forma do determinável; não uma especificidade, não uma forma específica informando uma matéria, não uma memória informando um presente, mas a forma pura e vazia do tempo. É a forma vazia do tempo que introduz, que constitui a Diferença no pensamento, a partir da qual ele pensa, como diferença do indeterminado e da determinação. É ela que engendra pensar no pensamento, pois o pensamento só pensa com a diferença, em torno desse ponto de a-fundamento. É a diferença, ou a forma do determinável, que faz com que o pensamento funcione, isto é, que faz com que funcione a máquina inteira do indeterminado e da determinação. A teoria do pensamento é como a pintura: tem necessidade dessa revolução que a faz passar da representação à arte abstrata; esse é o objeto de uma teoria do pensamento sem imagem.
p. 365

Individuações impessoais e singularidades pré-individuais
A representação, sobretudo quando se eleva ao infinito, é percorrida por um pressentimento do sem-fundo. Mas, por tornar-se infinita para assumir a diferença, ela representa o sem-fundo como um abismo totalmente indiferençado, [...]
p. 365
[...] Que o sem-fundo seja sem diferença, quando, na verdade, elas formigam nele, é a ilusão-limite, a ilusão exterior da representação, que resulta de todas as ilusões internas. E o que são as Ideias, com sua multiplicidade constitutiva, senão essas formigas que entram e saem pela rachadura do Eu?
p. 366

O simulacro
O simulacro é o sistema em que o diferente se refere ao diferente por meio da própria diferença. [...] O sistema do simulacro afirma a divergência e o descentramento; a única unidade, a única convergência de todas as séries é um caos informal que compreende todas elas. Nenhuma série goza de um privilégio sobre a outra, nenhuma possui a identidade de um modelo, nenhuma possui a semelhança de uma cópia. Nenhuma se opõe a outra nem lhe é análoga. Cada uma é constituída de diferenças e se comunica com as outras por diferenças de diferenças. As anarquias coroadas substituem as distribuições sedentárias da representação.
p. 367
Uma singularidade é o ponto de partida de uma série que se prolonga por todos os pontos ordinários do sistema até a vizinhança de outra singularidade; esta engendra outra série que ora converge para a primeira, ora diverge dela. A Ideia tem a potência de afirmar a divergência; ela estabelece uma espécie de ressonância entre séries que divergem.
p. 368

Teoria das Ideias e dos problemas
Assim definida, a Ideia não tem nenhuma atualidade. Ela é virtualidade pura.
p. 368
[...] as ressonâncias entre séries põem em jogo as relações ideais. [...] as Ideias se atualizam nas espécies e nas partes, nas qualidades e extensos que recobrem e desenvolvem esses campos de individuação. [...] O conjunto do sistema, que põe em jogo a Ideia, sua encarnação e sua atualização, deve expressar-se na noção complexa de “(indi)-diferenci/çação”. Toda coisa tem como que duas “metades”, ímpares, dissimétricas e dessemelhantes, as duas metades do Símbolo, cada uma delas dividindo-se em duas: uma metade ideal, que mergulha no virtual e é constituída, por um lado, pelas relações diferenciais e, por outro, pelas singularidades correspondentes; uma metade atual, constituída, por um lado, pelas qualidades que atualizam essas relações e, por outro, pelas partes que atualizam essas singularidades. É a individuação que assegura o encaixe das duas grandes metades não semelhantes.
p. 369
É um erro ver nos problemas um estado provisório e subjetivo, pelo qual nosso conhecimento deveria passar em razão das suas limitações de fato. É esse erro que libera a negação e desnatura a dialética, substituindo o (não)-ser do problema pelo não ser no negativo. O “problemático” é um estado do mundo, uma dimensão do sistema e até mesmo seu horizonte, seu foco: ele designa exatamente a objetividade da Ideia, a realidade do virtual.
p. 370

Os dois tipos de jogo: suas características
Há várias maneiras de jogar, e os jogos humanos e coletivos não se assemelham ao jogo divino solitário. Podemos opor as duas espécies de jogo, o humano e o ideal, segundo várias características. Primeiramente, o jogo humano supõe regras categóricas preexistentes. Em seguida, estas regras têm o efeito de determinar probabilidades, isto é, “hipóteses” de perda e hipóteses de ganho. Em terceiro lugar, esses jogos nunca afirmam todo o acaso; ao contrário, eles o fragmentam e, em cada caso, subtraem do acaso, excetuam do acaso a consequência do lance, pois eles consignam tal ganho ou tal perda como necessariamente ligado à hipótese. Eis por que, finalmente, o jogo humano procede por distribuições sedentárias: com efeito, a regra categórica prévia tem aí o papel invariante do Mesmo e goza de uma necessidade metafísica ou moral; por esta razão, ela subsume hipóteses opostas às quais ela faz com que corresponda uma série de lances, de jogadas, de arremessos numericamente distintos, encarregados de operar uma distribuição destas hipóteses; e os resultados dos lances, as reincidências, se repartem de acordo com sua consequência, segundo uma necessidade hipotética, isto é, de acordo com a hipótese efetuada. Eis a distribuição sedentária em que há partilha fixa de um distribuído, segundo uma proporcionalidade fixada pela regra.  Essa maneira humana, essa falsa maneira de jogar, não esconde seus pressupostos morais, onde a hipótese é a do Bem e do Mal, e o jogo é um aprendizado da moralidade.  [...] Esse jogo já se confunde com o exercício da representação, apresentando todos os seus elementos: a identidade superior do princípio, a oposição das hipóteses, a semelhança das jogadas numericamente distintas, a proporcionalidade na relação entre a consequência e a hipótese.
            Totalmente distinto é o jogo divino [...]
p. 373

Antes de tudo, não há regra preexistente, pois o jogo incide sobre sua própria regra. De tal modo que, a cada vez, todo o acaso é afirmado num lance necessariamente vencedor. [...] E as diferentes reincidências já não se repartem de acordo com a distribuição das hipóteses que elas efetuariam, mas elas próprias se distribuem no espaço aberto da jogada única e não compartilhada: distribuição nômade, em vez de sedentária.
[...] Mundo da “vontade”: entre as afirmações do acaso (questões imperativas e decisórias) e as afirmações resultantes engendradas (casos de solução decisivos ou resoluções) desenvolve-se toda a positividade das Ideias. O jogo do problemático e do imperativo substitui o do hipotético e do categórico; o jogo da diferença e da repetição substitui o do Mesmo e da representação.
p. 374

Crítica das categorias
É vã a pretensão de que uma lista de categorias possa ser em princípio aberta; de fato, ela pode ser, mas não em princípio, pois as categorias pertencem ao mundo da representação, no qual constituem formas de distribuição pelas quais o Ser se reparte entre os entes segundo regras de proporcionalidade sedentária. Eis por que a filosofia sempre sofreu a tentação de opor às categorias noções de uma natureza totalmente distinta, realmente abertas, que dessem testemunho de um sentido empírico e pluralista da Ideia: “existenciais” contra “essenciais”, perceptos contra conceitos[...] Tais noções, que é preciso chamar “fantásticas”, na medida em que se aplicam aos fantasmas ou simulacros, distinguem-se das categorias da representação de vários pontos de vista. Primeiramente, elas são condições da experiência real e não apenas da experiência possível. É mesmo neste sentido que, não sendo mais amplas do que o condicionado, reúnem as duas partes da estética, tão infelizmente dissociadas, a teoria das formas da experiência e da obra de arte como experimentação.
p. 375
[...] em segundo lugar, esses tipos orientam distribuições totalmente distintas, irredutíveis e incompatíveis: às distribuições sedentárias das categorias opõem-se as distribuições nômades operadas pelas noções fantásticas. Estão, com efeito, nem são universais, como as categorias, nem são hic et nunc, now here, como o diverso ao qual as categorias se aplicam na representação.
p. 376

A repetição, o idêntico e o negativo
É próprio da representação tomar como modelo uma repetição material nua, que ela compreende pelo Mesmo e explica pelo negativo.  [...] Elementos idênticos só se repetem à condição de uma independência dos “casos”, de uma descontinuidade das “vezes” que faz com que um só apareça se o outro tiver desaparecido: na representação, a repetição é forçada a se desfazer ao mesmo tempo que ela se faz. Ou, antes, ela não se faz. Ela não pode se fazer nessas condições.
[...] uma diferença faz necessariamente parte da repetição superficial da qual ela se extrai, trata-se de saber em que consiste essa diferença. Essa diferença é contração, mas em que consiste essa contração? Não seria ela o grau mais contraído, o nível mais tenso de um passado que coexiste consigo em todos os níveis de descontração e sob todos os graus? A cada instante tem-se todo o passado, mas em graus e níveis diversos, sendo o presente apenas o mais contraído, o mais tenso. Era essa a esplêndida hipótese bergsoniana. Então, a diferença presente não é, como há pouco,
p. 377
uma diferença extraída de uma repetição superficial de instantes, de maneira a esboçar uma profundidade sem a qual esta não existiria.
A diferença já não é extraída de uma repetição elementar, mas entre os graus ou níveis de uma repetição que é, a cada vez, total e totalizante, ela se desloca e se disfarça de um nível a outro, e cada nível compreende suas singularidades como pontos privilegiados que lhe são próprios. [...] eis que a própria diferença existe entre duas repetições: entre a repetição superficial dos elementos exteriores idênticos e instantâneos que ela contrai e a repetição profunda das totalidades internas de um passado sempre variável da qual ela é o nível mais contraído. É assim que a diferença tem duas faces ou que a síntese do tempo já tem dois aspectos: um, Habitus, tensionado para a primeira repetição que ele torna possível; outro, Mnemósina, dado à segunda repetição da qual ela resulta.
p. 378

As duas repetições
Portanto, é a mesma coisa dizer que a repetição material tem um sujeito passivo e secreto, que nada faz, mas no qual tudo se faz, e que há duas repetições, sendo a material a mais superficial. Talvez seja inexato atribuir todas as características da outra à Memória, mesmo que se entenda por memória a faculdade transcendental de um passado puro, tanto inventiva quanto rememorativa. Ocorre que a memória é a primeira figura em que aparecem as características opostas das duas repetições. Uma delas é a repetição do mesmo e só tem diferença subtraída ou extraída; a outra é repetição do Diferente e compreende a diferença.  [...] Uma é exatidão e de mecanismo, a outra é de seleção e de liberdade. Uma é repetição nua, que só pode ser mascarada por acréscimo e posteriormente; a outra é repetição vestida, cujas máscaras, deslocamentos e disfarces são os primeiros, os últimos e os únicos elementos.
p. 379
Ora, a repetição tem como potências o deslocamento e o disfarce, do mesmo modo que a diferença tem a divergência e o descentramento. Uma pertence tanto quanto a outra à Ideia, pois a Ideia não tem dentro nem fora [...]. Da diferença e da repetição, a Ideia faz um mesmo problema. Há um excesso próprio da Ideia, um exagero da Ideia, que faz da diferença e da repetição o objeto reunido, o “simultâneo” da Ideia. É do excesso da Ideia que o conceito se aproveita indevidamente.
p. 380
A Natureza nunca repetiria; suas repetições seriam sempre hipotéticas, deixadas à boa vontade do experimentador e do cientista, se ela se reduzisse à superfície da matéria, se a própria matéria não dispusesse de uma profundidade assim como de flancos da Natureza, onde a repetição viva e mortal se elabora, se torna imperativa e positiva, à condição de deslocar e disfarçar uma diferença sempre presente que faz da repetição uma evolução como tal.
p. 381

Patologia e arte; estereotipia e refrão:  a arte como lugar de coexistência de todas as repetições
As palavras e as ações dos homens engendram repetições materiais ou nuas, mas como efeito de repetições mais profundas e de outra natureza [...]. A repetição é o phatos, a filosofia da repetição é a patologia. Mas há tantas patologias quantas são as repetições intrincadas umas nas outras. 
Consideremos repetições gestuais ou linguísticas, iterações e estereotipias de tipo demencial ou esquizofrênico. Elas não mais parecem dar testemunho de uma vontade capaz de investir um objeto no quadro da cerimônia; elas funcionam antes como reflexos que marcam uma falência geral do investimento (daí a impossibilidade em que se encontra o doente de repetir à vontade nas provas a que é submetido).
P. 382
A repetição é a potência da linguagem, e, em vez de se explicar de maneira negativa, por uma insuficiência dos conceitos nominais, ela implica uma Ideia sempre excessiva da poesia. [...] Assim, é em função de sua potência mais positiva e mais ideal que a linguagem organiza todo seu sistema como repetição vestida.
p. 383
As estrofes giram em torno do refrão. E o que melhor que um canto para reunir os conceitos nominais e os conceitos da liberdade? É nessas condições que uma repetição nua é produzida: ao mesmo tempo no retorno do refrão, como representante do objeto = x, e em determinados aspectos das estrofes diferençadas (medida, rima, ou até mesmo verso rimando com o refrão) que, por sua vez, representam a compenetração das séries. [...]
p. 384

Rumo a uma terceira repetição, ontológica
Mas como evitar que esta profunda repetição não seja recoberta pelas repetições nuas que ela inspira e não caia na ilusão de um primado da repetição bruta? [...] Para além da repetição nua e da repetição vestida, para além da repetição da qual se extrai a diferença e daquela que a compreende, uma repetição que “faz” a diferença.
p. 384
Talvez o mais elevado objeto da arte seja fazer com que todas essas repetições atuem simultaneamente, com sua diferença de natureza e ritmo, seu deslocamento e seu disfarce respectivos, sua divergência e seu descentramento, encaixá-las umas nas outras e de uma à outra, envolve-las em ilusões cujo “efeito” varia em cada caso. A arte não imita, mas isso acontece, antes de tudo, porque ela repete, e repete todas as repetições, a partir de uma potência interior (a imitação é uma cópia, mas a arte é simulacro, ela subverte as cópias em simulacros). Até mesmo a repetição mais mecânica, mais cotidiana, mais habitual, mais estereotipada encontra seu lugar na obra de arte, estando sempre deslocada em relação a outras repetições com a condição de que se saiba extrair dela uma diferença para as outras repetições. Isto porque não há outro problema estético a não ser o da inserção da arte na vida cotidiana. Quanto mais nossa vida cotidiana aparece padronizada, estereotipada, submetida a uma reprodução acelerada de objetos de consumo, mais deve a arte ligar-se a ela e dela arrancar a pequena diferença que, por outro lado e simultaneamente, atua entre outros  níveis de repetição, como também fazer os dois extremos das séries habituais de consumo ressoarem com as séries dos instintos de destruição e de morte; juntar, assim, o quadro da crueldade ao da besteira, descobrir sob o consumo um crispar de maxilares hebefrênico e, sob as mais ignóbeis destruições da guerra, ainda processos de consumo, reproduzir esteticamente as ilusões e mistificações que constituem a essência real desta civilização, para que, finalmente, a Diferença se expresse com uma força repetitiva de cólera, capaz de introduzir a mais estranha seleção, mesmo que seja uma contração aqui e ali, isto é, uma liberdade para o fim de um mundo. Cada arte tem suas técnicas de repetições imbricadas, cujo poder crítico e revolucionário pode atingir o mais elevado ponto para nos conduzir das mornas repetições do hábito às profundas repetições da memória e, depois, às repetições últimas da morte, onde se decide nossa liberdade.
p. 385
[exemplo:] [...] a maneira pela qual, em pintura, a Pop-Art soube compelir a cópia, a cópia da cópia etc., até o ponto extremo em que ela se subverte e se torna simulacro [...]
p. 386

A forma do tempo e as três repetições
Todas as repetições não se ordenariam na forma pura do tempo? Esta forma pura, a linha reta, define-se, com efeito, por uma ordem que distribui um antes, um durante e um depois, por um conjunto que recolhe os três na simultaneidade de sua síntese a priori e por uma série que faz com que um tipo de repetição corresponda a cada um. Desse ponto de vista, devemos distinguir essencialmente a forma pura e os conteúdos empíricos. Poisos conteúdos empíricos são móveis e se sucedem; as determinações a priori do tempo são, ao contrário, fixas, estão paradas como numa foto ou num plano imóvel, coexistindo na síntese estática que opera sua distinção em relação à imagem de uma ação formidável.
p. 386
[...] do ponto de vista da forma pura do tempo, pois, agora, cada determinação (o primeiro, o segundo e o terceiro; o antes o durante e o depois) já é repetição em si mesma, na forma pura do tempo e em relação à imagem da ação. [...] A repetição já não incide (hipoteticamente) sobre uma primeira vez que pode escapar dela, e que de todo modo lhe permanece exterior; a repetição incide imperativamente sobre repetições, sobre modos ou tipos de repetição. A fronteira, a “diferença”, portanto, se deslocou singularmente: ela já não está entre a primeira vez e as outras, entre o repetido e a repetição, mas entre os tipos de repetição. O que se repete é apropria repetição. [...]
            Como explicar que, quando a repetição incide sobre as repetições, que, quando ela reúne todas e introduz entre elas a diferença, ela adquire de pronto um formidável poder de seleção? [...] De acordo com um primeiro nível, a repetição do Antes define-se de maneira negativa e por insuficiência: repete-se porque não se sabe, porque não se recorda etc., porque não se é capaz de ação [...]. Portanto, o “se” significa aqui o inconsciente do Isso como primeira potência da repetição. A repetição do Durante define-se por um devir-semelhante ou um devir-igual: tornar-se capaz da ação, tornar-se igual à imagem da ação, sendo que agora o “se” significa o inconsciente do Eu, sua metamorfose, sua projeção num Eu ou eu-ideal como segunda potência da repetição. [...] Num outro nível, o herói repete a primeira, a do Antes, como num sonho e de um modo nu, mecânico, estereotipado, que constitui o cômico; todavia, esta repetição nada seria se já não remetesse a alguma coisa de oculto, de disfarçado em sua própria série, capaz de nela introduzir contrações como um Habitus hesitante em que a outra repetição amadurece. Esta segunda repetição do Durante é aquela em que o herói se apodera do próprio disfarce, reveste a metamorfose que lhe restitui de um modo trágico, com sua própria identidade, as profundezas de sua memória e de toda a memória do mundo, que ele pretende, tornando-se capaz de agir, igualar ao tempo inteiro. Eis, portanto, que as duas repetições, neste segundo nível, retomam e repartem à sua maneira as duas sínteses do tempo, as duas formas, nua e vestida, que as caracterizam.
p. 388

O que não retorna
O terno retorno afirma a diferença, afirma a dessemelhança e o díspar, o acaso, o múltiplo e o devir. [...] são eliminadas pelo eterno retorno precisamente as instâncias que jugulam a diferença, que paralisam seu transporte, submetendo-o ao quádruplo jugo da representação. A diferença só se reconquista, só se libera no extremo de sua potência, isto é, pela repetição no eterno retorno. O eterno retorno elimina aquilo que, tornando impossível o transporte da diferença, torna ele próprio impossível. O que ele elimina é o Mesmo e o semelhante, o análogo e o Negativo como pressupostos da representação.
p. 393

Analogia do ser e representação, univocidade do ser e repetição
A representação implica essencialmente a analogia do ser. Mas a repetição é a única Ontologia realizada, isto é, a univocidade do ser.
p. 397







quinta-feira, 4 de abril de 2019

Manifesto dos Iguais

Manifesto dos Iguais(1)

Gracchus Babeuf

1796


Primeira Edição: ........
Fonte: Mundo do Socialismo.
Tradução:........
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, maio 2006.
Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

Povo da França!
Durante perto de vinte séculos viveste na escravidão e foste por isso demasiado infeliz. Mas desde há seis anos que respiras afanosamente na esperança da independência, da felicidade e da igualdade.
A igualdade! - primeira promessa da natureza, primeira necessidade do homem e elemento essencial de toda a legítima associação! Povo da França, tu não ficaste mais favorecido do que as outras nações que vegetam sobre esta mísera terra! Sempre e em qualquer lado, a pobre espécie humana, vítima de antropófagos mais ou menos astutos, foi joguete de todas as ambições, pasto de todas as tiranias. Sempre e em qualquer lado se adulou os homens com belas palavras, mas nunca e em lugar nenhum obtiveram eles aquilo que, através das palavras, lhes prometeram. Desde tempos imemoriais se vem repetindo hipocritamente: os homens são iguais. Mas desde há longo tempo que a desigualdade mais vil e mais monstruosa pesa insolentemente sobre o gênero humano.
Desde a própria existência da sociedade civil, o atributo mais belo do homem vem sendo reconhecido sem oposição, mas nem uma só vez pôde ver-se convertido em realidade: a igualdade nunca foi mais do que uma bela e estéril ficção da lei. E hoje, quando essa igualdade é exigida numa voz mais forte do que nunca, a resposta é esta: "Calai-vos, miseráveis! A igualdade não é realmente mais do que uma quimera; contentai-vos com a igualdade relativa: todos sois iguais em face da lei. Que quereis mais, miseráveis?" Que mais queremos? Legisladores, governantes, proprietários ricos; é agora a vossa vez de nos escutardes.
Todos somos iguais, não é verdade? Este é um princípio incontestável, porque ninguém poderá dizer seriamente, a não ser que esteja atacado de loucura, que é noite quando se vê que ainda é dia. Pois bem, o que pretendemos é viver e morrer iguais já que como iguais nascemos: queremos a igualdade efetiva ou a morte.
Não importa qual o preço, mas havemos de conquistar essa igualdade real. Ai daqueles que se interponham entre ela e nós! Ai de quem se oponha a um juramento formulado desta forma!
A Revolução Francesa não é mais do que a vanguarda de outra revolução maior e mais solene: a última revolução.
O povo passou por cima dos corpos do rei e dos poderosos coligados contra ele; e assim acontecerá com os novos tiranos, com os novos tartufos políticos sentados no lugar dos velhos.
De que mais precisamos além da igualdade de direitos?
Temos apenas necessidade dessa igualdade, da qual resulta a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: queremos vê-la entre nós, sob o teto das nossas casas. Estamos dispostos a tudo, a fazer tábua-rasa de tudo o mais, apenas para conservar a igualdade. Pereçam, se for necessário, todas as artes, desde que se mantenha de pé a igualdade real!
Legisladores e governantes, com tão pouco engenho como boa fé, proprietários ricos e sem coração, em vão tentais neutralizar a nossa sagrada missão dizendo: "Eles não fazem mais do que reproduzir aquela lei agrária exigida já por diversas vezes no passado".
Caluniadores, calai-vos pela vossa parte e, em silêncio de confissão, escutai as nossas pretensões, ditadas pela natureza e baseadas na justiça.
A lei agrária, ou a divisão da terra, foi aspiração momentânea de alguns soldados sem princípios, de algumas populações incitadas pelo seu instinto mais do que pela razão. Nós temos algo de mais sublime e de mais eqüitativo: o bem comum, ou a comunidade de bens! Nós reclamamos, nós queremos desfrutar coletivamente dos frutos da terra: esses frutos pertencem a todos.
Declaramos que, posteriormente, não poderemos permitir que a imensa maioria dos homens trabalhe e esteja ao serviço e ao mando de uma pequena minoria.
Há muito tempo já que menos de um milhão de indivíduos tem vindo a dispor de quanto pertence a mais de vinte milhões de semelhantes seus, de homens que são em tudo iguais a eles.
Devemos pôr termo a este grande escândalo, que os nossos netos não quererão acreditar possa ter existido! Devemos fazer desaparecer, finalmente, essas odiosas distinções de classes entre ricos e pobres, entre grandes e pequenos, entre senhores e servos, entre governantes e governados.
Que entre os homens não exista mais nenhuma diferença do que aquela que lhes é dada pela idade e pelo sexo. E, porque todos temos as mesmas necessidades e as mesmas faculdades, que exista, portanto, uma única educação para todos e um idêntico regime de alimentação. Toda a gente se sente satisfeita por dispor do sol e do mesmo ar que respira. Porque não há de acontecer o mesmo com a quantidade e a qualidade dos alimentos?
Mas é verdade que já os inimigos da ordem de coisas mais natural que imaginar se possa protestam e clamam contra nós.
Desorganizadores e facciosos, dizem-nos eles, vós só desejais que exista anarquia e massacre.
Povo da França!
Não desejamos perder tempo a responder a esses senhores, mas a ti dizemos-te: a sagrada tarefa em que estamos empenhados não tem outro objetivo que não seja pôr termo às lutas civis e à miséria pública.
Nunca foi concebido e posto em execução um plano mais vasto do que este. De vez em quando, alguns homens de talento, homens inteligentes, falaram em voz baixa e temerosa desse plano. Mas nenhum deles, claro, teve a coragem necessária para dizer toda a verdade.
Chegou a hora das grandes decisões. O mal encontra-se no seu ponto culminante, está a cobrir toda a face da terra. O caos, sob o nome de política, há já demasiados séculos que reina sobre ela. Que tudo volte, pois, a entrar na ordem exata e que cada coisa torne a ocupar o seu posto. Ao grito de igualdade, os elementos da justiça e da felicidade estão a organizar-se. Chegou o momento de fundar a República dos Iguais, este grande refúgio aberto a todos os homens. Chegaram os dias da restituição geral. Famílias sacrificadas, vinde todas sentar-vos à mesa comum posta para todos os vossos filhos.
Povo da França!
A ti estava, pois, reservada a mais esplendorosa de todas as glórias! Sim, tu serás o primeiro que oferecerá ao Mundo este comovedor espetáculo.
Os hábitos inveterados, os antigos preconceitos, farão novamente tudo para impedir a implantação da República dos Iguais. A organização da igualdade efetiva, a única que satisfaz todas as necessidades sem provocar vítimas, sem custar sacrifícios, talvez em princípio não agrade a todos. Os egoístas, os ambiciosos, rugirão de raiva. Os que conquistaram injustamente as suas possessões dirão que está a cometer-se uma injustiça em relação a eles. Os prazeres individuais, os prazeres solitários, as comodidades pessoais, serão motivo de grande pesar para os indivíduos que sempre se caracterizaram pela sua indiferença ante os sofrimentos do próximo. Os amantes do poder absoluto, os miseráveis partidários da autoridade arbitrária, baixarão pesarosos as suas soberbas cabeças perante o nível da igualdade real. A sua visão estreita dificilmente penetrará no próximo futuro da felicidade comum. Mas que podem fazer alguns milhares de descontentes contra uma massa de homens completamente satisfeitos de terem procurado durante tanto tempo uma felicidade que sempre tiveram à mão?
Logo que se verificar esta autêntica revolução, estes últimos, estupefatos, dirão uns aos outros: "Como custava tão pouco conseguir a felicidade comum! Era necessário apenas ter o desejo de alcançá-la. E por que não fizemos isso há mais tempo?" Será preciso repetir sempre uma e outra vez? Sim, sem dúvida, basta que sobre a terra um homem seja mais rico e mais poderoso do que os seus semelhantes, do que os seus iguais, para que o equilíbrio se quebre e o crime e a desgraça invadam o Mundo.
Povo da França!
Quais os sinais que nos permitem reconhecer as qualidades de uma Constituição? Aquela que se apóia integralmente sobre a igualdade é, na realidade, a única que te convém, a única que satisfaz as tuas aspirações.
As cartas aristocráticas dos anos 1791 e 1795, em vez de romper as tuas cadeias, vieram consolidá-las. A de 1793 supôs ser um grande passo no sentido da igualdade real, mas não conseguiu todavia esse objetivo e não apontou diretamente para a igualdade comum, embora consagrasse solenemente o grande princípio dessa igualdade.
Povo da França!
Abre os olhos e o coração para a plenitude da felicidade; reconhece e proclama conosco a República dos Iguais.

Notas:
(1) Considerado como a primeira declaração política de caráter socialista.