BAKUNIN, Michael Alexandrovich, 1814 – 1876. Textos anarquistas. Porto Alegre: L & PM, 2010. 160 pgs.
Quem sou eu
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Sou um amante fanático da liberdade, considerando-a como único espaço onde podem crescer e desenvolver-se a inteligência, a dignidade e a felicidade dos homens; não esta liberdade formal, outorgada e regulamentada pelo Estado, mentira eterna que, em realidade, representa apenas o privilégio de alguns, apoiada na escravidão de todos; não esta liberdade individualista, egoísta, mesquinha e fictícia, enaltecida pela escola de J. J. Rousseau e por todas as outras escolas do liberalismo burguês, que considera o assim chamado direito de todo mundo, representado pelo Estado, como o limite do direito de cada um, o que conduz, sempre e necessariamente, o direito de cada um a zero.
Não, só aceito uma única liberdade que possa ser realmente digna deste nome, a liberdade que consiste no pleno desenvolvimento de todas as potencialidades materiais, intelectuais e morais que se encontrem em estado latente em cada um; a liberdade que não reconheça outras restrições que aquelas que nos são traçadas pelas leis de nossa própria natureza; de maneira que não há, propriamente, restrições, pois estas leis não nos são impostas por nenhum legislador de fora, situando-se ao lado ou acima de nós; elas nos são imanentes, inerentes e constituem a base de nosso ser, tanto material quanto intelectual e moral. Em vez de achar nelas um limite, devemos considerá-las como as condições reais e como a razão efetiva da nossa liberdade.
Entendo que a liberdade de cada um que, longe de parar como diante de um marco, diante da liberdade de outrem, encontra aí sua confirmação e sua extensão ao infinito; a liberdade ilimitada de cada um pela liberdade de todos, a liberdade pela solidariedade, a liberdade na igualdade; a liberdade triunfante da força bruta e do princípio de autoridade que nunca foi nada mais do que a expressão ideal desta força; a liberdade que, depois de ter derrubado todos os ídolos celestes e terrestres, fundará e organizará um mundo novo, o da humanidade solidária, sobre as ruínas de todas as Igrejas e de todos os Estados. [p. 37]
[...]
[...] Mas, partidário da liberdade, condição primeira da humanidade, penso que a igualdade deve estabelecer-se no mundo pela organização espontânea do trabalho e da propriedade coletiva das associações produtoras, livremente organizadas e federalizadas nas comunas, e pela federalização igualmente espontânea das comunas, e não pela ação suprema e tutelar do Estado. [p. 38]
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Os comunistas acreditam que devem organizar as forças operárias para dominar a potência política dos Estados. Os socialistas revolucionários se organizam com vistas à destruição, ou se quisermos usar um eufemismo, com vistas ao aniquilamento dos Estados. Os comunistas são partidários do príncipe e da prática da autoridade, os socialistas revolucionários só tem confiança na liberdade. Uns e outros igualmente partidários da ciência que deve matar a superstição e substituir a fé; os primeiros queriam impô-la, os outros se esforçarão por propagá-la para que os grupos humanos, convencidos, se organizem e se federalizem espontaneamente, livremente, de baixo para cima, através de seu próprio movimento e de seus reais interesses, nunca seguindo um plano traçado antecipadamente e imposto às massas ignorantes por algumas inteligências superiores. [...] [p. 39]
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[...] a humanidade deixou-se, por um tempo demasiado longo, governar, e que a fonte destas infelicidades não se encontra em uma ou outra forma de governo, mas no princípio e no próprio governo qualquer que ele seja. [p. 39]
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Deus e o Estado (1871)
Indivíduo, sociedade. Liberdade
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[...] o homem só realiza sua liberdade individual ou sua personalidade completando-se com todos os indivíduos que o cercam e somente graças ao trabalho e à força coletiva da sociedade, fora da qual, de todos os animais ferozes que existem na Terra, ele seria, sem dúvida e sempre, o mais estúpido e miserável. [p. 40]
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A liberdade e eu
[...] A definição materialista, realista e coletivista da liberdade [...] é esta: o homem só se torna homem e só chega à consciência e à realização de sua humanidade em sociedade e somente através da ação coletiva da sociedade inteira; ele só se emancipa do jugo da natureza exterior pelo trabalho coletivo ou social que é o único capaz de transformar a superfície da Terra em lugar favorável aos progressos da humanidade. Sem esta emancipação material não pode haver a emancipação intelectual e moral para ninguém. Ele só pode emancipar-se do jugo de sua própria natureza, isto é, só pode subordinar os instintos e os movimentos de seu próprio corpo na direção de seu espírito cada vez mais desenvolvido, através da educação e da instrução; mas uma e outra são coisas eminentemente e exclusivamente sociais, pois fora da sociedade o homem teria permanecido eternamente na condição de animal selvagem ou de santo, o que significa quase a mesma coisa.
Enfim, um homem isolado não pode ter consciência de sua liberdade. Ser livre, para o homem, significa ser reconhecido, considerado e tratado como tal por um outro homem, por todos os homens que o circundam. A liberdade não é, pois, um fato de isolamento, mas de reflexão mútua, não de exclusão, mas de ligação; a liberdade de todo indivíduo é entendida apenas como a reflexão sobre sua humanidade ou sobre seu direito humano na consciência de todos os homens livres, seus irmãos, seus semelhantes.
Só posso considerar-me e sentir-me livre na presença e em relação a outros homens.
[...] Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, são igualmente livres. A liberdade do outro, longe de ser um limite ou a negação da minha liberdade, é, ao contrário, sua condição necessária e sua confirmação. [p. 42]
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Estado e governo
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[...] O Estado absolutamente não é a sociedade, é apenas uma forma histórica tão brutal quanto abstrata. [p. 43]
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[...] O Estado é autoridade, é a força, é a ostentação e a enfatuação da força. Ele não se insinua, não procura converter; sempre que interfere, o faz de mau jeito, pois sua natureza não é de persuadir, mas de impor-se, de forçar. Inutilmente tenta mascarar esta natureza de violador legal da vontade dos homens, de negação permanente de sua liberdade. Então, mesmo que determine o bem, ele o estraga, precisamente porque o ordena, e porque toda ordem provoca e suscita revoltas legítimas da liberdade; e porque o bem, no momento, da moral humana, não divina, do ponto de vista do respeito humano e da liberdade, torna-se um mal. [p. 43]
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A exploração é o corpo visível e o governo é a alma do regime burguês. E, como acabamos de ver, uma e outra, nesta ligação tão íntima, são tanto do ponto de vista teórico como prático, a expressão necessária e fiel do idealismo metafísico, a conseqüência inevitável desta doutrina burguesa que procura a liberdade e a moral dos indivíduos fora da solidariedade social. [p. 44]
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A Sociedade ou Fraternidade Internacional Revolucionária (1865)
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A impossibilidade de tal federação ou aliança sem um programa comum que satisfaça igualmente os direitos e as legítimas necessidades de todas as nações e que, sem considerar os assim chamados direitos históricos, nem o que se chama a necessidade ou salvação dos Estados, nem as glórias nacionais, nem qualquer outra pretensão vaidosa ou ambiciosa de prepotência ou força, coisas que um povo deve saber rejeitar se quiser ser verdadeiramente livre, tendo somente, por fundamento e por princípio, a liberdade igual para todos e a justiça. [p. 57]
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[...] as religiões [...] só dizem respeito à consciência individual de cada um, devendo ser mantidas unicamente por seus fiéis.
Necessidade absoluta de cada país que quiser fazer parte desta federação livre de povos de substituir a organização centralista, burocrática e militar por uma organização federal, baseada na liberdade absoluta e na autonomia das regiões, das províncias, dos municípios, das associações e dos indivíduos com funcionários eletivos e responsáveis diante do povo, e com o armamento nacional, organização que não se formará, como atualmente, de cima para baixo, mas de baixo para cima e da circunferência para o centro, pelo princípio de federação livre, partindo dos indivíduos livres que formarão as associações, as comunas autônomas; das comunas autônomas que formarão as províncias autônomas; das províncias autônomas que formarão as regiões e das regiões que, federalizando-se livremente entre si, formarão os países que, por sua vez, formarão os países que, por sua vez, formarão cedo ou tarde a federação universal e mundial.
[...]
Impossibilidade da liberdade política sem igualdade política. Impossibilidade desta, sem igualdade econômica e social.
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A terra pertence a todo mundo. Mas seu aproveitamento pertencerá apenas aos que a cultivem com suas próprias mãos. Abolição da renda da terra.
Sendo todas as riquezas sociais produzidas pelo trabalho, quem delas se aproveitar sem trabalho será um ladrão. [p. 59]
[...]
Sem nenhuma espoliação, mas pelos esforços e forças econômicas das associações operárias, o capital e os instrumentos de trabalho se tornarão propriedade dos que os utilizarem para a produção de riquezas pelo seu próprio trabalho. [p. 60]
Cada homem deve ser o filho de suas obras, e só haverá justiça quando a organização da sociedade for tal que cada um ao nascer encontre os mesmos meios de manutenção, de educação, de instrução e, mais tarde, as mesmas facilidades externas de criar seu próprio bem-estar através do trabalho.
Em cada país poderá fazer-se a emancipação do casamento da tutela da sociedade e igualar os direitos das mulheres aos dos homens. [p. 60]
[...]
[...] a revolução deverá adquirir o caráter local no sentido de que não deverá começar por uma grande concentração de forças revolucionárias de um país em um único ponto; nem adquirir jamais o caráter romanesco e burguês de uma expedição quase revolucionário, mas, surgindo ao mesmo tempo em todos os pontos de um país, terá o caráter de uma verdadeira revolução popular na qual tomarão igualmente parte mulheres, velhos, crianças e que, por isso mesmo, será invencível. [...] [p. 61]
[...]
Ela se oporá às posições e às coisas, bem mais que aos homens, certa de que as coisas e as posições privilegiadas e anti-sociais, muito mais fortes do que os indivíduos, constituem o caráter e a força de seus inimigos. [p. 61]
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[...] Assim, a ordem e a unidade, destruídas enquanto produtos da violência e do despotismo, renascerão do próprio seio da liberdade. [p. 62]
Catecismo revolucionário
Princípios gerais
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Substituindo o culto de Deus pelo respeito e o amor da humanidade, declaramos a razão humana como critério único da verdade; a consciência humana como base da justiça; a liberdade individual e coletiva como criadora única da ordem da humanidade.
A liberdade é o direito absoluto de todo o homem ou mulher maiores de só procurar na própria consciência e na própria razão as sanções para seus atos, de determiná-los apenas por sua própria vontade e de, em conseqüência, serem responsáveis primeiramente perante si mesmos, depois, perante a sociedade da qual fazem parte, com a condição de que consintam livremente dela fazerem parte.
Não é verdadeiro que a liberdade de um homem seja limitada pela de todos os outros. O homem só é realmente livre na medida em que sua liberdade, livremente reconhecida e representada como por um espelho pela consciência livre de todos os outros, encontre a confirmação de sua extensão até o infinito na sua liberdade. O homem só verdadeiramente livre entre outros homens igualmente livres, e como ele só é livre na condição de ser humano, a escravidão de um só homem sobre a terra, sendo uma ofensa contra o próprio princípio da humanidade, é uma negação da liberdade de todos. [p. 63]
A liberdade de cada um só se realiza, pois, com a igualdade de todos. A realização da liberdade na igualdade de direito e de fato é a justiça.
Existe apenas um dogma, uma única lei, uma única base moral para os homens, é a liberdade. Respeitar a liberdade do próximo é um dever; amá-lo, ajudá-lo, servi-lo é uma virtude. [p. 64]
[...]
[...] A ordem na sociedade deve ser resultante do maior desenvolvimento possível de todas as liberdades locais, coletivas e individuais. [p. 64]
[...]
Organização política
É impossível determinar uma norma concreta, universal e obrigatória para o desenvolvimento interior e para a organização política das nações; ficando a existência de cada uma subordinada a uma série de condições históricas, geográficas e econômicas diferentes e que nunca permitirão estabelecer um modelo de organização, igualmente bom e aceitável para todos. [p. 64]
[...]
[...] há condições essenciais, absolutas, fora das quais a realização prática e a organização da liberdade serão sempre impossíveis.
Essas condições são as seguintes:
[...] Liberdade absoluta de consciência e de propaganda para cada um, com a faculdade ilimitada de construir tantos templos quantos quiserem, aos seus deuses quaisquer que sejam, desde que paguem e mantenham os padres de sua religião. [p. 65]
[...]
Abolição das classes, das categorias, dos privilégios e de todas as espécies de distinções. Igualdade absoluta de direitos políticos para todos, homens e mulheres; sufrágio universal.
Abolição, dissolução e bancarrota moral, política, judiciária, burocrática e financeira do Estado tutelar, transcendente, centralista, substituto e alter ego da Igreja, e, como tal, causa permanente de empobrecimento, de embrutecimento e de submissão dos povos. [p. 65]
[...]
Eleição imediata e direta de todos os funcionários públicos, judiciários e civis, assim como dos representantes ou conselheiros nacionais, provinciais e municipais, pelo povo, isto é, sufrágio universal de todos os indivíduos, das associações produtivas e doa municípios.
Direitos individuais
Direito de cada um, desde o nascimento até a maioridade, de ser inteiramente mantido, fiscalizado, protegido, educado, instruído em todas as escolas públicas primárias, superiores, industriais, artísticas e científicas à custa da sociedade. [p. 66]
[...]
A liberdade de cada indivíduo maior, homem ou mulher, deve ser absoluta e completa, liberdade de ir e vir, de professar elevadamente todas as opiniões possíveis, de ser preguiçoso ou ativo, imoral ou moral, em suma, de dispor de sua própria pessoa e de seus bens como melhor lhe aprouver, sem dar satisfação a ninguém; liberdade de viver, seja honestamente pelo seu trabalho, seja explorando vergonhosamente a caridade ou a confiança privada, desde que esta caridade e esta confiança sejam voluntárias e só lhe sejam proporcionadas por indivíduos maiores. [p. 67]
[...]
A liberdade só pode e só deve defender-se pela liberdade, sendo um perigoso contra-senso querer atacá-la sob o pretexto de protegê-la [...] [p. 67]
[...]
[...] o sistema repressivo e autoritário, longe de ter sustado os abusos, sempre os propiciou de modo mais amplo e profundo nos países atingidos e que a moral pública e privada sempre desceu e subiu à medida que a liberdade dos indivíduos diminuía ou aumentava. [...] [p. 68]
[...]
[...] Abolição de todas as penas por tempo indeterminado ou muito longo e que não deixem nenhuma esperança, nenhuma possibilidade de reabilitação, devendo o crime ser considerado como uma doença e a punição antes como uma cura do que como uma vingança da sociedade. [p. 69]
[...]
Um federalismo internacionalista
[...]
4. [...] Fundado essencialmente sobre um ato ulterior de violência, a conquista ou o que na vida privada chamamos roubo com arrombamento, ato abençoado pela Igreja de uma religião qualquer, consagrado pelo tempo e por isso transformado em Direito histórico, e apoiando-se nesta divina consagração da violência triunfante como em um direito exclusivo e supremo, cada Estado centralista se coloca como a negação absoluta do direito de todos os outros Estados, só os reconhecendo, nos tratados que ultima com eles, por interesse político ou por impotência. [p. 95]
[...]
12. A liga reconhecerá a nacionalidade como um fato natural, tendo incontestavelmente direito a uma existência e a um desenvolvimento livre, não como um princípio, pois todo princípio deve ter o caráter da universidade e a nacionalidade, ao contrário, é um fato exclusivo, separado. O suposto princípio da nacionalidade, como foi colocado em nossos dias pelos governos da França, da Rússia e da Prússia e até por muitos patriotas alemães, poloneses, italianos e húngaros, é apenas um derivativo oposto pela reação ao espírito da revolução: eminentemente aristocrático no fundo, a ponto de desprezar os dialetos das populações não letradas, negando implicitamente a liberdade das províncias e a autonomia real das comunas, e mantido em todos os países não pelas massas populares, cujos interesses reais ele sacrifica sistematicamente a um suposto bem público, que nada mais é do que o das classes privilegiadas, este princípio exprime apenas os pretensos direitos históricos e a ambição dos Estados. [...] [p. 98]
[...]
13. A unidade é o objetivo em direção da qual tende irresistivelmente a humanidade. Mas ela se tornará fatal, destruidora da inteligência, da dignidade, da prosperidade dos indivíduos e dos povos, sempre que se formar fora da liberdade, seja sob a autoridade de uma idéia teológica, metafísica, política ou até econômica qualquer. O patriotismo que tem por objetivo a unidade fora da liberdade é um mau patriotismo, sempre funesto aos interesses populares e reais do país que pretende exaltar e servir, amigo, sem o saber, da reação – inimigo da revolução, isto é, da emancipação das nações e dos homens. A liga só poderá reconhecer uma única unidade: a que se constituir livremente pela federação das partes autônomas no todo, de forma que este, cessando de ser a negação dos direitos e dos interesses particulares, cessando de ser o cemitério onde forçosamente se enterram todas as prosperidades locais, se tornará ao contrário a confirmação e a fonte de todas estas autonomias e de todas estas prosperidades. [...] [p. 98]
A Igreja e o Estado
Diz-se que o acordo e a solidariedade universal dos interesses dos indivíduos e da sociedade nunca poderá realizar-se de fato, porque seus interesses, sendo contraditórios, não estão em condições de contrabalançar-se de si mesmos ou de chegar a uma interpretação qualquer. A tal objeção eu responderia que, se até hoje, os interesses nunca e em lugar algum estiveram de mútuo acordo, foi por causa do Estado, que sacrificou os interesses da maioria em proveito de uma minoria privilegiada. [p. 100]
[...]
Mas se os metafísicos, principalmente aqueles que acreditam na imortalidade da alma, afirmam que os homens são fora da sociedade seres livres, chegamos inevitavelmente então à conclusão de que os homens só podem unir-se em sociedade se renegarem sua liberdade, sua independência natural e sacrificarem seus interesses, primeiramente pessoais, e depois locais. Tal renúncia e tal sacrifício de si mesmo deve ser, por isso mesmo, tanto mais imperioso quanto mais numerosa for a sociedade e mais complexa sua organização. Em tal caso, o Estado é a expressão de todos os sacrifícios individuais. Existindo sob esta forma abstrata, e ao mesmo tempo violenta, continua, como conseqüência natural, a perturbar cada vez mais a liberdade individual em nome desta mentira que se chama “felicidade pública”, embora, evidentemente, represente apenas o interesse da classe dominante. O Estado, deste modo, nos aparece como uma inevitável negação e uma anulação de toda liberdade, de todo interesse, tanto individual quanto geral. [p. 101]
[...]
Nós, contudo, não acreditando nem em Deus nem na imortalidade da alma, nem na própria liberdade da vontade, afirmamos que a liberdade deve ser compreendida, na sua acepção mais completa e mais ampla, como a finalidade do progresso histórico da humanidade. [p. 101]
[...]
Nós outros, materialistas em teoria, tendemos na prática a criar e a tornar durável um idealismo racional e nobre. [p. 101]
[...]
Estamos convencidos de que toda a riqueza do desenvolvimento intelectual, moral e material do homem, assim como sua aparente independência, é o produto da vida em sociedade. [tcc]
Fora da sociedade, o homem não só não seria livre, como nem mesmo se tornaria um verdadeiro homem, isto é, um ser que tem consciência de si próprio, que sente, pensa e fala. O concurso da Inteligência e do trabalho coletivo tem podido forçar o homem a sair de seu estado de selvagem e bruto que constituía sua natureza primordial ou seu ponto inicial de desenvolvimento ulterior. Estamos profundamente convencidos desta verdade que toda a vida dos homens, interesses, tendências, necessidades, ilusões e até tolices, assim como as violências, as injustiças e todas as ações, aparentemente voluntárias, representam apenas a conseqüência das forças fatais da vida em sociedade. As pessoas não podem admitir a idéia da independência mútua sem renegar a influência recíproca da correlação das manifestações da natureza exterior.
Na própria natureza esta maravilhosa correlação e filiação dos fenômenos não é esperada, certamente, sem luta. Ao contrário, a harmonia das forças da natureza só aparece como um verdadeiro resultado desta luta contínua, que é a própria condição da vida e do movimento. Na natureza, assim como na sociedade, ordem sem luta é morte. [p. 101]
[...]
Somente a superioridade do homem sobre os outros animais e a faculdade de pensar trouxeram em seu desenvolvimento um elemento particular, completamente natural, diga-se de passagem, no sentido que, como tudo o que existe, o homem representa o produto material da união e da ação das forças. Este elemento particular é o raciocínio, ou esta faculdade de generalização e de abstração, graças à qual o homem pode proteger-se pelo pensamento, examinando-se e observando-se, como um objeto externo e estranho. Elevando-se identicamente acima de si mesmo, assim como do meio ambiente, chaga à abstração perfeita, ao nada absoluto. Este último limite da mais alta abstração do pensamento, este nada absoluto é Deus. [p. 103]
[...]
O homem facilmente acredita no que ele deseja e naquilo que não contradiz seus interesses. [p. 105]
[...]
Em sua grande maioria, as pessoas vivem em contradição consigo mesmas, e em contínuos mal-entendidos; geralmente não o notam, até que algum acontecimento extraordinário os retire de sua sonolência habitual e os force a dar uma olhada em si mesmos e em volta de si. [p. 106]
Programa e objetivo da Organização Secreta Revolucionária dos Irmãos Internacionais (1968)
Convencidos de que o mal individual e social reside muito menos nos indivíduos do que na organização das coisas e nas posições sociais, nós seremos humanos, tanto por sentimento de justiça quanto por cálculo de utilidade, e destruiremos sem piedade as posições e as coisas a fim de poder, sem nenhum perigo para a Revolução, poupar os homens. Negamos o livre-arbítrio e o pretenso direito da sociedade de punir. A própria justiça, tomada no seu sentido mais humano e mais amplo, é apenas uma idéia, por assim dizer, negativa e de transição; ela coloca o problema social, mas não o resolve, indicando apenas o único caminho possível de emancipação humana, isto é, de humanização da sociedade pela liberdade na igualdade; a solução positiva só poderá ser dada pela organização cada vez mais racional da sociedade. Esta solução tão desejada, ideal de todos nós, é a liberdade, a moralidade, a inteligência e o bem estar de cada um pela solidariedade de todos, a fraternidade humana. [p. 109]
[...]
A organização da sociedade sendo sempre em todos os lugares a única causa dos crimes cometidos pelos homens, há hipocrisia ou absurdo evidente da parte da sociedade em punir os criminosos, uma vez que toda punição supõe a culpa e os criminosos não são nunca culpados. A teoria da culpa e da punição surge da teologia, isto é, do casamento do absurdo com a hipocrisia religiosa. O único direito que se pode reconhecer à sociedade, em seu estado atual de transição, é o direito natural de assassinar os criminosos produzidos por ela mesma no interesse de sua própria defesa e não o de julgá-los e condená-los. [...] e, quanto mais a sociedade souber evitar utilizá-lo, mais ela estará próxima de sua real emancipação. [p. 110]
[...]
[...] a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas, isto é, a instituição do Estado e sua conseqüência assim como sua base natural, a propriedade individual.
Para fazer uma revolução radical é preciso, pois, atacar as posições e as coisas, destruir a propriedade e o Estado, assim não se terá necessidade de destruir os homens, e de condenar-se à reação infalível e inevitável que o massacre dos homens nunca deixou e não deixará nunca de produzir em cada sociedade. [111]
[...]
Somos inimigos naturais destes revolucionários, futuros ditadores, regulamentadores e tutores da revolução, que, antes mesmo que os Estados monárquicos, aristocráticos e burgueses atuais sejam destruídos, sonham com a criação de novos Estados revolucionários, tão centralizadores e mais despóticos do que os Estados que existem hoje, que possuem uma vocação tão grande para a ordem criada por uma autoridade qualquer e um horror tão grande pelo que lhes parece desordem e que nada mais é do que a franca e natural expressão da vida popular, que, antes mesmo que uma boa e saudável desordem se produza pela revolução, sonham já com o fim e o cerceamento pela ação de uma autoridade qualquer que só terá o nome da revolução, mas que efetivamente nada mais será do que uma nova reação, pois será uma outra condenação das massas populares, governadas por decretos, à obediência, à imobilidade, à morte, isto é, à escravidão e à exploração por uma nova aristocracia pouco revolucionária.[p. 112]
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