segunda-feira, 28 de março de 2011

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo.



FICHAMENTO
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Porto Alegre: L&PM, 2010. 144p.
Ditos e setas
[...]

5.
Há muitas coisas que, de uma vez por todas, não quero saber. – A sabedoria traça limites também para o conhecimento. [p. 18]
[...]

7.
Como? O homem é apenas um erro de Deus? Ou será Deus apenas um erro do homem? [p. 19]

8.
Da escola de guerra da vida. – O que não me mata me torna mais forte. [p. 19]
9.
Ajuda a ti mesmo: então todos te ajudarão. Princípio do amor ao próximo. [p. 19]

10.
Que não sejamos covardes em relação aos nossos atos! Que não os abandonemos uma vez consumados! – O remorso é indecente. [p. 19]
[...]

12.
Quando alguém tem o seu por quê? Da vida, tolera quase qualquer como? – O ser humano não aspira à felicidade; isso é coisa que só os ingleses fazem. [p. 19]

[...]

14.
O quê? Estás à procura? Gostarias de te multiplicar por dez, por cem? Procuras seguidores? – Procura zeros! [p. 20]
[...]

18.
Quem não sabe colocar sua vontade nas coisas, coloca nelas pelo menos um sentido: ou seja, acredita que já exista nelas uma vontade (princípio da “fé”). [p. 20]
[...]

31.
O verme se encolhe quando pisado. Uma atitude prudente. Diminui assim a probabilidade de ser pisado outra vez. Na linguagem da moral: humildade. [p. 23]
[...]

34.
[...] Apenas os pensamentos caminhados têm valor. [p. 23]
[...]

37.
Corres à frente? – Fazes isso na condição de pastor ou de exceção? Uma terceira possibilidade seria o desertor... Primeiro caso de consciência. [p. 24]
[...]

41.
Queres ir junto? Ou à frente? Ou andar sozinho?... Devemos saber o que queremos e que o queremos. Quarto caso de consciência. [p. 25]

O problema de Sócrates
[...]

2.
Juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, não podem, afinal, jamais ser verdadeiros: apenas possuem valor como sintomas, apenas como tal entram em consideração – em si, tais juízos são bobagens. É preciso realmente esticar os dedos nessa direção e fazer a tentativa de apreender a assombrosa finesse de que o valor da vida não pode ser apreciado. Não por um vidente, porque ele é parte envolvida, inclusive objeto de disputa, e não juiz; não por um morto, por outra razão. – Dessa forma, o fato de um filósofo ver o valor da vida como um problema e até uma objeção contra ele, um ponto de interrogação quanto à sua sabedoria, uma ignorância. [p. 27]
[...]

5.
Com Sócrates, o gosto grego muda em favor da dialética: o que realmente acontece aí? Sobretudo, um gosto nobre é derrotado; a plebe ascende com a dialética. Antes de Sócrates, as maneiras dialéticas eram repudiadas na boa sociedade: eram consideradas maus modos, eram comprometedoras. [...] [p. 29]
[...]

6.
[...] É preciso ter de obter seu direito à força: antes disso não se faz uso da dialética. [...] [p. 30]
[...]

11.
[...] A mais ofuscante luz diurna, a racionalidade a todo custo, a vida lúcida, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em oposição aos instintos, tudo isso era apenas uma doença, mais uma doença – e de forma alguma um retorno à “virtude”, à “saúde”, à felicidade... Ser forçado a combater os instintos – essa é a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é sinônimo de instinto.

A razão na filosofia

1.
Os senhores me perguntam quais são as idiossincrasias dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio à própria idéia de devir, seu egipcianismo. Eles acreditam honrar uma coisa ao despojá-la de seu aspecto histórico sub specie aeterni – ao fazer dela uma múmia. Tudo o que os filósofos manusearam há milênios foram múmias conceituais, nenhuma realidade escapou viva de suas mãos. [...] [p. 34]
[...] Todos acreditam, até com desespero, no ser. Como, porém, não conseguem agarrá-lo, buscam as razões pelas quais são privados de possuí-lo. “Deve haver uma aparência, um embuste, que nos impede de perceber o ser: onde está o embusteiro?” – “Nós o apanhamos”, gritam radiantes, “é a sensibilidade! Esses sentidos, que aliás também são tão imorais, nos enganam acerca do mundo verdadeiro. Moral: livrar-se do engano dos sentidos, do devir, da história, da mentira – a história não passa de crença nos sentidos, de crença na mentira. Moral: negar tudo que crê nos sentidos, o resto da humanidade: ela não passa de ‘povo’. Ser filósofo, ser múmia, representar o monoteísmo fazendo uso de uma mímica de coveiro! - E fora, sobretudo, com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! Esse corpo acometido por todos os erros de lógica existentes, refutado, até impossível, ainda que seja atrevido o bastante para se portar como se fosse real!...” [p. 35]

2.
[...] A “razão” é a causa de falsearmos o testemunho dos sentidos. [...] O mundo “aparente” é o único: o “mundo verdadeiro” é apenas um acréscimo mentiroso... [p. 35]

3.
[...] A ciência que hoje possuímos vai exatamente tão longe quanto nos decidimos a aceitar o testemunho dos sentidos – tão longe quanto ainda aprendemos a aguçá-los, armá-los e pensá-los até o fim. [...] [p. 36]

4.
[...] Todos os valores superiores são de primeira categoria, todos os conceitos supremos, o ser, o absoluto, o bem, o verdadeiro, o perfeito – nenhum deles pode ter experimentado o devir, devem, por conseguinte, ser causa sui. Mas, além disso, esses conceitos não podem ser desiguais entre si, não podem ser contraditórios... e assim os filósofos chegam ao seu estupendo conceito de “Deus”... A coisa última, a mais rarefeita, a mais vazia é colocada em primeiro lugar, como causa em si, como ens realissimum... Ah, que a humanidade tenha levado a sério as enfermidades cerebrais desses mórbidos fiadores de patranhas! – Ela pagou caro por isso!... [p. 37]
[...]

6.
[...] As razões pelas quais “este” mundo foi chamado de aparente fundamentam, pelo contrário, sua realidade – uma outra espécie de realidade é absolutamente indemonstrável.
[...] As características que foram atribuídas ao “ser verdadeiro” das coisas são características do não-ser, do nada – o “mundo verdadeiro” foi construído em oposição ao mundo real: na verdade, ele é um mundo aparente na medida em que é meramente uma ilusão ótico-moral.
[...] Não há sentido algum em fabular acerca de um “outro” mundo além deste se não houver um instinto de calúnia, de amesquinhamento, de suspeita em relação à vida nos dominado: nesse caso, nos vingamos dela com a fantasmagoria de uma “outra” vida, de uma vida “melhor”.
[...] O fato de o artista dar mais valor a aparência do que à realidade não constitui objeção a essa tese. Pois, nesse caso, “a aparência” significa a realidade mais uma vez, só que selecionada, reforçada, corrigida... O artista trágico não é pessimista – ele justamente diz sim a tudo aquilo que é questionável e mesmo terrível; ele é dionisíaco... [p. 39]

A moral como antinatureza
1.
[...] Outrora, em razão da estupidez nas paixões, se combatiam as próprias paixões: conspirava-se para a sua aniquilação – todos os velhos monstros morais são unânimes na opinião de que Il faut tuer lês passions. [...] Aniquilar as paixões e os apetites apenas para evitar sua estupidez e as conseqüências desagradáveis dessa estupidez nos parece hoje apenas uma forma aguda de estupidez. [...] Porém, arrancar as paixões pela raiz significa arrancar a vida pela raiz: o procedimento da Igreja é hostil à vida... [p. 43]

2.
O mesmo expediente – castração, extirpação – é escolhido instintivamente por aqueles que, ao lutarem contra um apetite, são muito fracos de vontade, muito degenerados para serem capazes de se colocar um limite quanto a ele [...] Os expedientes radicais são imprescindíveis apenas aos degenerados: a fraqueza da vontade; a fraqueza da vontade – dito mais exatamente, a incapacidade de não reagir a um estímulo – é ela própria apenas outra forma de degenerescência. [...] [p. 44]

3.
[...] Em todas as épocas, a Igreja quis a aniquilação de seus inimigos: nós, imoralistas e anticristãos, vemos nossa vantagem no fato de a Igreja continuar existindo... Também no âmbito da política a hostilidade se tornou hoje mais espiritual – muito mais sagaz, muito mais reflexiva, muito mais cuidadosa. Quase todo partido considera uma questão de autoconservação que o partido adversário não perca suas forças; o mesmo vale para a grande política. Especialmente uma nova criação, o novo Reich, por exemplo, tem mais necessidade de inimigos do que de amigos: é apenas no antagonismo que ele se sente necessário, apenas no antagonismo que ele se torna necessário... Não nos comportamos de forma diferente quanto ao “inimigo interior”: também neste caso espiritualizamos a hostilidade, também neste caso espiritualizamos a hostilidade, também neste caso compreendemos o seu valor. Só se é fértil ao preço de ser rico em oposições; só se permanece jovem se a alma não se espreguiça, não anseia pela paz... [...] [p. 45]

4.
[...] Todo naturalismo na moral, ou seja, toda moral sadia, é dominado por um instinto de vida  um mandamento qualquer da vida é preenchido por um cânone determinado de “deves” e “não deves”, quaisquer obstáculos e hostilidades no caminho da vida são assim removidos. A moral antinatural, ou seja, quase toda moral que até agora foi ensinada, venerada e pregada, volta-se, ao contrário, justamente contra os instintos da vida – ela é uma condenação desses instintos, ora secreta, ora sonora e atrevida. [...] A vida acaba onde o “reino de Deus” começa... [p. 46]

5.
[...] Quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a própria vida nos força a fixar valores, a própria vida valora através de nós quando fixamos valores... Segue-se daí que também aquela moral antinatural que compreende Deus como conceito contrário à vida e como sua condenação é apenas um juízo de valor da vida – de que vida? De que espécie de vida? – Mas já dei a resposta: da vida declinante, enfraquecida, cansada, condenada. [...] [p. 47]

6.
Consideremos ainda, por fim, que ingenuidade é dizer: “O homem deveria ser assim e assim!”. A realidade nos mostra uma riqueza encantadora de tipos, a exuberância de um pródigo jogo de formas, de uma pródiga mudança de formas: e vem um miserável moralista indolente e diz: “Não! O homem deve ser diferente”?... [...] O indivíduo, visto de todos os lados, é um fragmento de fatum, é uma lei a mais, uma necessidade a mais para tudo que vem e que será. Dizer-lhe que “se modifique” significa exigir que tudo se modifique, mesmo o que passou... [...] A moral, na medida em que condena em si, e não por considerações, atenções e determinações da vida, é um erro específico pelo qual não se deve ter compaixão, uma idiossincrasia de degenerados que provocou danos indizíveis! [...] [p. 48]

Os quatro grandes erros
[...]

2.
Eis a fórmula mais geral que está no fundamento de todas as religiões e morais: “Faça isto e aquilo, não faça isto e aquilo – assim serás feliz! Caso contrário...” Todas as morais, todas as religiões, são esse imperativo – eu o chamo de o grande pecado original da razão, a desrazão imortal. Em minha boca, essa fórmula se transforma em seu contrário – primeiro exemplo de minha ”transvaloração de todos os valores”: um homem bem constituído, um “homem feliz”, precisa executar determinadas ações e receia outras por instinto, ele introduz nas suas relações com pessoas e coisas a ordem que representa fisiologicamente. Numa fórmula: sua virtude é a conseqüência de sua felicidade... [...] A Igreja e a moral dizem: “Uma estirpe, um povo, são arruinados pelo vício e pelo luxo”. Minha razão restabelecida diz: quando um povo se arruína, quando degenera fisiologicamente, então seguem-se o vício e o luxo (quer dizer, a necessidade de estímulos cada vez mais fortes e mais freqüentes, conforme a conhece toda natureza esgotada). [...] o fato de não ter resistido à doença, já foi conseqüência de uma vida empobrecida, de um esgotamento hereditário. [...] Todo erro, em todos os sentidos, é conseqüência de uma degeneração dos instintos, de uma desagregação da vontade: com isso quase se define aquilo que é ruim. Tudo aquilo que é bom é instinto – e, consequentemente, leve, necessário, livre. [...] [p. 51]

3.
[...] o homem projetou para fora de si os três “fatos interiores”, aquilo em que mais firmemente acreditava, a vontade, o espírito e o eu – ele tomou o conceito de ser a partir do conceito de eu, estabeleceu as “coisas” como existentes segundo sua própria imagem, segundo seu conceito de eu como causa. Como se admirar de que posteriormente sempre tenha encontrado nas coisas aquilo que introduziu nelas? [...] O erro do espírito como causa confundido com a realidade! E transformado em medida da realidade! E chamado de Deus! [p. 53]
[...]

5.
[...] Reduzir algo desconhecido a algo conhecido alivia, acalma, satisfaz e, além disso, dá uma sensação de poder. Como o desconhecido vem o perigo, a inquietação, a preocupação – o primeiro instinto se volta para a eliminação desses estados desagradáveis. Primeiro princípio: qualquer explicação é melhor que nenhuma. Por se tratar, no fundo, apenas de um desejo de ser livre de representações opressivas, não se é lá muito rigoroso com os expedientes para tanto: a primeira idéia que explica o desconhecido como conhecido faz tão bem que é “tomada por verdadeira”. A prova do prazer (“da força”) como critério de verdade. – O impulso causal, portanto, depende e é estimulado pelo sentimento do medo. O “por que”? deve, se possível, não tanto fornecer a causa em razão dela mesma, mas, antes, uma espécie de causa – uma causa que tranqüilize, liberte, alivie. A primeira consequência dessa necessidade é o fato de alguma coisa já conhecida, experimentada, inscrita na memória, ser estabelecida como causa. O novo, o não experimentado, o estranho, é excluído como causa.
- Assim, não é buscada como causa tão-somente uma espécie de explicação, mas uma espécie escolhida e privilegiada de explicação, daquelas que eliminam do modo mais rápido, mais frequente, a sensação do estranho, do novo, do não experimentado – as explicações mais habituais.  – Consequência: uma espécie de determinação de causas prevalece sempre mais, se concentra num sistema e enfim se sobressai dominante, ou seja, simplesmente excluindo outras causas e explicações.  [...] [p. 55]

6.
Todo o âmbito da moral e da religião se inclui nessa noção de causas imaginárias. – “Explicação das sensações gerais desagradáveis. Devem-se a seres que nos são hostis [...]. Devem-se as ações que não podem ser aprovadas [...]. Devem-se a uma punição, a uma retaliação por alguma coisa que não deveríamos ter feito, que não deveríamos ter sido [...]. Devem-se à conseqüências de ações impensadas, que acabaram mal [...]. “Explicação” das sensações gerais agradáveis. Devem-se à confiança em Deus. Devem-se a consciência das boas ações [...]. Devem-se ao bom resultado de empreendimentos [...]. Devem-se a fé, ao amor e à esperança -  as virtudes cristãs. Na verdade todas essas explicações são produtos e como que traduções de sensações de prazer ou desprazer num dialeto equivocado: uma pessoa está em condições de ter esperança porque a sensação fisiológica básica está forte e rica novamente; uma pessoa acredita em Deus porque a sensação de plenitude e força lhe dá tranqüilidade. – A moral e a religião se incluem inteiramente na psicologia do erro: em cada caso individual, se confunde causa e efeito; ou a verdade é confundida com o efeito daquilo que se acredita ser verdadeiro, ou um estado de consciência é confundido com a causalidade desse estado. [p. 57]

7.
(importante tcc)
O erro do livre-arbítrio – Hoje não temos mais qualquer compaixão pelo conceito de “livre-arbítrio”: sabemos muito bem o que ele é – o mais infame truque de teólogos que há, cuja finalidade é tornar a humanidade “responsável” no sentido deles, ou seja, torná-la dependente deles... [...] – Em todo lugar onde se procura responsabilidades, costuma ser o instinto de querer punir e julgar que está a procura delas. O devir foi despido de sua inocência quando se busca explicar pela vontade, pelas intenções ou por atos de responsabilidade alguma maneira de ser: a doutrina da vontade foi inventada essencialmente com a finalidade de punir, ou seja, de querer encontrar culpados. [...] [p. 57]

8.
[...] Ninguém é responsável por existir, por ser constituído desta ou daquela forma, por estar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade de seu ser não pode ser separada da fatalidade de tudo que foi e será. Ele não é a consequência de uma intenção própria, de uma vontade, de uma finalidade; com ele não é feita a tentativa de alcançar um “ideal de homem” ou um “ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade” – é absurdo querer rolar o seu ser na direção de uma finalidade qualquer. Fomos nós que inventamos a noção de “finalidade”: a finalidade está ausente da realidade... Somos necessários, somos um fragmento de destino, pertencemos ao todo, estamos no todo [...] Que ninguém mais seja responsabilizado, que não seja lícito explicar o tipo de ser mediante uma causa prima, que o mundo não constitui uma unidade nem como sensório nem como “espírito”, apenas essa é a grande libertação – apenas assim a inocência do devir é restaurada... O conceito de “Deus” foi até agora a maior objeção à existência... Negamos a Deus, negamos a responsabilidade em Deus: apenas assim libertamos o mundo. [p. 59]

Os “melhoradores” da humanidade
1.
É conhecida a exigência que faço ao filósofo de que se coloque além do bem e do mal – de que tenha abaixo de si a ilusão do juízo moral. Essa exigência resulta de uma compreensão que fui o primeiro a formular: a de que não existem quaisquer fatos morais. O juízo moral tem em comum com o religioso o fato de acreditar em realidades que não são. A moral é apenas uma interpretação de certos fenômenos. [...] A moral é apenas discurso por sinais, apenas sintomatologia: é preciso já saber do que se trata para tirar proveito dela.

2.
[...] Em todas as épocas se quis “melhorar” os homens: isso, sobretudo, foi chamado de moral. Sob a mesma palavra, porém, se escondem as mais diversas tendências. Tanto a domesticação da besta homem quanto o cultivo de um determinado gênero de homem foram chamados de “melhoramento” [...] Chamar a domesticação de um animal de “melhoramento” soa aos nossos ouvidos quase como uma piada. Quem sabe o que acontece nas exposições de feras duvida que nelas a besta seja “melhorada”. Ela é enfraquecida, tornada menos daninha, transformada uma besta doentia através da dor, dos ferimentos, da fome. [...] Falando fisiologicamente: na luta contra a besta, torná-la doente pode ser o único meio de enfraquecê-la. Isso a Igreja entendeu: ela corrompeu o homem, ela o enfraqueceu – mas pretendeu tê-lo “melhorado”... [p. 61]
[...]

4.
[...] O cristianismo, cuja raiz é judaica e só é compreensível como planta desse solo, representa o movimento contrário a toda moral do cultivo, da raça, do privilégio [...] [p. 64]

5.
[...] podemos estabelecer a tese suprema de que para fazer moral é preciso ter a vontade incondicional do contrário. Este é o grande, o monstruoso problema que por mais tempo investiguei: a psicologia dos “melhoradores” da humanidade. [...] a pia fraus [fraude piedosa], o patrimônio de todos os filósofos e sacerdotes que “melhoraram” a humanidade. Nem Manu nem Platão, nem Confúcio nem os mestres judaicos e cristãos alguma vez duvidaram de seu direito à mentira. Eles não duvidaram de direitos muito diferentes... Poderíamos dizer numa fórmula: até o presente, todos os meios pelos quais a humanidade deveria se tornar moral forma radicalmente imorais. [p. 65]

O que falta aos alemães
1.
[...] Paga-se caro por chegar ao poder: o poder imbeciliza... [...] [p. 66]

2.
[...] Quanta gravidade aborrecida, torpor, umidade, roupão, quanta cerveja há na intelectualidade alemã! Como é possível que jovens que consagram sua existência aos fins espirituais não percebam em si o primeiro instinto da espiritualidade, o instinto de autoconservação do espírito – e bebam cerveja? [...] [p. 67]
[...]

4.
[...] Se gastarmos nossas energias com o poder, a grande política, a economia, o comércio internacional, o parlamentarismo, os interesses militares – se gastarmos neste lado a quantidade de entendimento, seriedade, vontade e autossuperação que somos, então ela faltará do outro. A cultura e o Estado – não nos enganemos quanto a isso – são antagonistas: o “Estado cultural” é só uma idéia moderna. Um vive do outro, um prospera às custas do outro. Todas as grandes épocas da cultura são épocas de decadência política:  o que é grande no sentido da cultura foi apolítica, mesmo antipolítico­. [...] [p. 69]

5.
[...] O que as “escolas superiores” da Alemanha efetivamente alcançam é um adestramento brutal que, com o menor dispêndio possível de tempo, visa tornar um grande número de jovens aproveitável, explorável, para o serviço do Estado. “Educação superior” e grande número – coisas que se contradizem de antemão. [...] Homens de um tipo superior, se me permitem dizê-lo, não gostam de “profissões”, precisamente porque sabem que têm vocações... Eles têm tempo, tomam tempo para si, de modo algum pensam em ficar “prontos” – com trinta anos, no sentido de uma cultura superior, se é um iniciante, uma criança. [...] [p. 72]

6.
[...] Deve-se aprender a ver, deve-se aprender a pensar, deve-se aprender a falar e a escrever: nos três casos, a meta é uma cultura nobre. – Aprender a ver – habituar o olho à calma, à paciência, a deixar que as coisas se aproximem; adiar o juízo, aprender a envolver e cercar o caso particular por todos os lados. Esta é a primeira preparação para a espiritualidade: não reagir imediatamente a um estímulo, mas lançar mão dos instintos que inibem e isolam. Aprender a ver, segundo compreendo, é quase aquilo que o modo de falar não filosófico chama de vontade forte: o essencial aí, é precisamente não “querer”, é poder suspender a decisão. Toda falta de espiritualidade, toda vulgaridade, repousa sobre a incapacidade de resistir a um estímulo – é preciso reagir, segue-se cada impulso. [...] quase tudo que a rudeza não filosófica designa pelo nome de “vício” é apenas essa incapacidade fisiológica de não reagir. [...] [p. 73]
[...]

Incursões de um extemporâneo
[...]

5.
[...] O cristianismo é um sistema, uma visão coerente e global das coisas. Se arrancarmos dele um conceito capital, a fé em Deus, também despedaçamos o todo: não temos mais uma coisa necessária entre os dedos. O cristianismo pressupõe que o homem não sabe, não pode saber, o que é bom e o que é mau para ele: acredita em Deus, o único sabedor. A moral cristã é uma ordem; sua origem é transcendente; ela está além de toda crítica, de todo direito à crítica; apenas contém verdade caso Deus seja a verdade – ela depende inteiramente da fé em Deus. [...] [p. 80]
[...]

7.
[...] A natureza, estimada artisticamente, não é um modelo. Ela exagera, ela deforma, ela deixa lacunas. A natureza é o acaso. O estudo “segundo a natureza” me parece um péssimo sinal: revela submissão, fraqueza, fatalismo – ficar deitado na poeira diante de petitis faits é indigno de um artista inteiro. Ver aquilo que é – isso é próprio de uma outra classe de espíritos, os antiartísticos, os fatuais. É preciso saber quem se é... [p. 82]

8.
Da psicologia do artista. Para que exista arte, para que exista algum fazer e contemplar estético, é imprescindível uma condição fisiológica: a embriaguez. [...] O essencial na embriaguez é o sentimento de plenitude e de intensificação da força. É a partir desse sentimento que damos às coisas, as forçamos a que tomem de nós, as violentamos – esse processo é chamado de idealização. Livremo-no aqui de um preconceito: a idealização não consiste, como geralmente se acredita, em atirar ou subtrair o que é pequeno, secundário. O decisivo, antes, é um colossal transbordar dos traços principais, de modo que os demais desaparecem. [p. 83]

9.
Nesse estado enriquecemos todas as coisas com a nossa própria plenitude: o que se vê, o que se quer, é visto intumescido, apinhado, enérgico, sobrecarregado de força. O homem que se encontra nesse estado transforma as coisas até que reflitam o seu poder – até que sejam reflexos de sua perfeição. Esse ter de transformar em perfeição é – arte. [p. 83]
[...]

15.
Casuística de psicólogos. – Eis um conhecedor dos seres humanos: para que, propriamente, os estuda? Ele quer tirar pequenas vantagens deles, ou mesmo grandes – ele é um político!... Aquele ali também é um conhecedor dos seres humanos: e os senhores afirmam que não quer nada para si com isso, que é um grande “impessoal”. Prestem atenção! Talvez ele queira inclusive uma vantagem muito mais séria: sentir-se superior às pessoas, poder olhá-las de cima, não ser mais confundido com elas. Esse “impessoal” é um desprezador dos seres humanos: e o primeiro é a espécie mais humana, pouco importando o que digam as aparências. Ele ao menos se coloca no mesmo nível, se coloca dentro... [p. 88]
[...]

19.
Belo e feio. – Nada é mais condicionado, digamos mais limitado, do que o nosso sentimento do belo. Quem quisesse pensá-la separado do prazer que o ser humano sente consigo próprio, perderia de imediato o solo debaixo dos pés. O “belo em si” é meramente uma expressão, não é sequer um conceito. No belo, o ser humano define a si mesmo como medida da perfeição; em casos escolhidos, adora nele a si próprio. Uma espécie não pode absolutamente dizer sim a si mesma senão dessa forma. Seu instinto mais básico, o da autoconservação e da autopropagação, se irradia mesmo em tais sublimidades. O homem acredita que o mundo está cumulado de beleza – esquece que ele próprio é a causa disso. Somente ele lhe presenteou a beleza, ah, apenas uma beleza muito humana, demasiado humana... No fundo, o homem se espelha nas coisas, ele julga belo tudo aquilo que devolve sua imagem: o juízo “belo” é a vaidade da sua espécie... [...] [p. 91]
[...]

24.
L’art pour l’art. – A luta contra a finalidade na arte é sempre a luta contra a tendência moralizante na arte, contra a subordinação à moral. L’art pour l’art significa: “Para o inferno com a moral!”. – Porém, mesmo essa hostilidade revela o predomínio do preconceito. [...] A arte é o grande estimulante da vida: como poderia ser compreendida como desprovida de finalidade, de meta, como l’art pour l’art? [...] [p. 96]

33.
O valor natural do egoísmo. – O egoísmo vale tanto quanto vale fisiologicamente aquele que o possui: ele pode valer muito ou pode ser vil e desprezível. Cada indivíduo pode ser observado com a finalidade de sabermos se representa a linha ascendente ou descendente da vida. Com uma decisão acerca disso também temos um cânone para o valor do egoísmo. Caso represente a ascensão da linha, seu valor é de fato extraordinário – e, por causa do todo da vida que com ele dá um passo adiante, o cuidado com a conservação, com a criação, de seu optimum de condições pode mesmo ser extremo. O indivíduo, o “indivisível”, tal como o povo e o filósofo o entenderam até agora, é,  no fim das contas, um erro: ele não é algo à parte, não é um átomo, não é um “elo da corrente”, não é algo meramente herdado de outrora – ele é a linha humana inteira que chega até ele e inclusive o ultrapassa... [...] [p. 101]

34.
Cristão e anarquista. – Quando o anarquista, na condição de porta-voz das camadas declinantes da sociedade, exige “direito”, “justiça” e “direitos iguais” com uma bela indignação, apenas se encontra sob a pressão de sua incultura, que não consegue compreender por que realmente ele sofre – do que é pobre, de vida... Ele é dominado por um impulso causal: alguém deve ser culpado por ele estar mal... Só a “bela indignação” já lhe faz bem, vociferar é um prazer para todos os pobres-diabos – isso dá uma pequena embriaguez de poder. Já basta a queixa, o queixar-se, para dar à vida um encanto pelo qual se suporta vivê-la: há uma dose sutil de vingança em toda queixa; a pessoa censura aqueles que são diferentes, como se isso fosse uma injustiça, um privilégio ilícito, por uma situação ruim, às vezes até por sua ruindade. “Se sou canaille, também deverias selo”: é com base nessa lógica que se faz revolução.  – O queixar-se não vale nada em caso algum: ele provém da fraqueza. Atribuir sua situação ruim a outros ou a si mesmo – a primeira atitude é própria do socialista, a última, do cristão, por exemplo – não faz qualquer verdadeira diferença. O que há em comum, digamos o que há de indigno nisso, é que alguém deva ser culpado por sofrermos – em resumo, que o sofredor prescreva para seu sofrimento o mel da vingança. [...] O cristão e o anarquista – ambos são decadénts. [...] [p. 103]

35.
Crítica d amoral da décadence. – Uma moral “altruísta”, uma moral em que o egoísmo definha, é, de qualquer maneira, um mau sinal. Isso vale para o indivíduo, isso vale sobretudo para povos. Falta o melhor quando começa a faltar egoísmo. Escolher instintivamente o que é danoso para si, ser atraído por motivos “desinteressados”, é quase a fórmula da décadence. “Não buscar o seu benefício” – isso é apenas a folha de parreira moral que encobre um fato muito diferente, a saber, um fato fisiológico: “Não sei mais encontrar o meu benefício”... Desagregação dos instintos! – Quando o homem se torna altruísta, é o seu fim. [...] [p. 103]

36.
Moral para médicos. – O doente é um parasita da sociedade. Em certo estado, é indecente viver por mais tempo. Continuar vegetando em covarde dependência de médicos e de tratamentos depois que se perdeu o sentido da vida, o direito à vida, deveria ter como consequência um profundo desprezo por parte da sociedade. Os médicos, por sua vez, deveriam ser os mediadores desse desprezo – não receitas, mas todo dia uma nova dose de nojo de seus pacientes... Criar uma nova responsabilidade, a do médico, para todos os casos em que o interesse supremo da vida, da vida ascendente, exija o mais implacável esmagamento e eliminação da vida degenerante [...] [p. 104]

37.
[...] A diminuição dos instintos hostis e que despertam desconfiança – e este seria, afinal, o nosso “progresso” – representa apenas uma das conseqüências na diminuição geral da vitalidade: custa cem vezes mais esforço, mais cautela, levar a cabo uma existência tão condicionada, tão tardia. As pessoas se ajudam mutuamente, todo mundo é doente e enfermeiro em certo grau. Isto, então, é chamado de “virtude”: entre homens que ainda conheciam a vida de outra forma, mais plena, mais esbanjadora, mais transbordante, isso teria outro nome, talvez “covardia”, “miséria”, “moral de velhas”... Nossa amenização dos costumes – esta é minha tese, esta é, caso se queira, a minha inovação – é uma consequência de declínio; inversamente, costumes duros e terríveis podem ser uma consequência do excesso de vida: pois então também se pode ousar muito, desafiar muito, também se pode desperdiçar muito. [...] As épocas mais forte, as culturas nobres, vêem na compaixão, no “amor ao próximo”, na falta de sentimento de si, de orgulho de si, algo desprezível. [...] Nossas virtudes se devem à nossa fraqueza, são incitadas por ela... A “igualdade”, um certo assemelhamento efetivo que ganha expressão na teoria dos “direitos iguais”, é essencialmente própria do declínio: o abismo entre um homem e outro, entre uma classe e outra, a multiplicidade dos tipos, a vontade que a pessoa tem de ser ela mesma, de se distinguir, isso que chamo de páthos da distância, é próprio de toda época forte. [...] [p. 109]

38.
Meu conceito de liberdade. – Às vezes, o valor de uma coisa não se encontra no que com ela se alcança, mas naquilo que por ela se paga – naquilo que ela nos custa. Dou um exemplo. As instituições liberais deixam de ser liberais tão logo sejam alcançadas; não há, posteriormente piores e mais radicais lesadores da liberdade do que as instituições liberais. [...] Liberalismo: em linguagem clara, transformação em animais de rebanho... [...] Pois o que é liberdade? Ter a vontade de ser responsável por si mesmo. Conservar a distância que nos separa. Tornar-se mais indiferente à fadiga, à dureza, à privação, inclusive à vida. Estar pronto a sacrificar homens à sua causa, sem descontar a si próprio. Liberdade significa que os instintos viris, que se alegram com a guerra e com a vitória, possuem o domínio sobre outros instintos; por exemplo, sobre os instintos da “felicidade”. O home liberto, e tanto mais o espírito liberto, pisoteia a espécie desprezível de bem-estar com que sonham merceeiros, cristãos, vacas, mulheres, ingleses e outros democratas. O home livre é guerreiro. – Pelo que se mede a liberdade, tanto de indivíduos quanto de povos? Pela resistência que precisa ser superada, pelo esforço que custa ficar em cima. [...] Aquelas grandes estufas para a espécie forte de homem, para a espécie mais forte que existiu até agora, as comunidades aristocráticas nos moldes de Roma e Veneza, entenderam a liberdade exatamente no mesmo sentido em que entendo essa palavra: uma coisa que se tem e não se tem, que se quer, que se conquista... [p. 111]

39.
Crítica da modernidade. – Nossas instituições não prestam mais: acerca disso somos unânimes. Mas isso não se deve a elas, e sim a nós. Depois que perdemos todos os instintos dos quais brotam instituições, perdemos as próprias instituições porque nós não prestamos mais para elas. O democratismo sempre foi a forma decadente da força organizadora [...] Para que existam instituições, é preciso existir uma espécie de vontade, instinto, imperativo, que seja antiliberal até a maldade: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos, de solidariedade entre séries de gerações para frente e para trás in infinitum. [...] O Ocidente inteiro não possui mais aqueles instintos dos quais brotam instituições, dos quais brota futuro: talvez nada desagrade tanto ao seu “espírito moderno”. Vive-se para hoje, vive-se muito depressa – vive-se de modo muito irresponsável: precisamente isso é chamado de “liberdade”. Aquilo que faz das instituições o que elas são é desprezado, odiado, repudiado: basta ouvirem a palavra “autoridade” e as pessoas acreditam estar na iminência de uma nova escravidão. [...] Com a crescente indulgência em favor do casamento por amor, foi eliminada terminantemente a base do casamento, aquilo que faz dele uma instituição. Em hipótese alguma se funda uma instituição sobre uma idiossincrasia, não se funda o casamento, conforme já foi dito, sobre o “amor” [...] [p. 113]

40.
A questão operária. [...] Caso se queira um fim, também é preciso querer os meios: caso se queiram escravos, então se é louco ao educá-los para que sejam senhores. [p. 114]

41.
“Liberdade que não amo...” – [...] Hoje o indivíduo deveria ser tornado possível na medida em que fosse podado: possível, ou seja, inteiro... Acontece o contrário: o direito à independência, ao livre desenvolvimento, ao laisser aller, é reivindicado com a maior veemência justamente por aqueles aos quais nenhuma rédea seria firme demais – isso vale in politicis, isso vale na arte. Mas isso é um sintoma de décadence: nosso moderno conceito de “liberdade” é uma prova a mais da degeneração do instinto. [p. 115]

42.
Onde a fé é necessária. – Nada é mais raro entre os moralistas e santos do que a retidão; talvez eles digam o contrário, talvez até acreditem no contrário. Pois quando uma fé é mais útil, mais eficaz, mais persuasiva do que a hipocrisia consciente, tal hipocrisia logo se transforma, por instinto, em inocência: primeira tese para a compreensão dos grandes santos. [...] [p. 116]
[...]

44.
Meu conceito de gênio. – Assim como as grandes épocas, os grandes homens são explosivos nos quais está acumulada uma energia formidável; seu pressuposto é sempre, histórica e fisiologicamente, que por longo tempo se tenha ajuntado, acumulado, poupado e guardado com vista a eles – que por longo tempo não tenha ocorrido nenhuma explosão. Caso a tensão na massa tenha se tornado muito grande, basta o mais acidental dos estímulos para chamar ao mundo o “gênio”, a “ação”, o grande destino. [...] O gênio – em obras, em ações – é necessariamente um esbanjador: sua grandeza está no fato de se gastar... [...] [p. 117]

45.
[...] quase todas as formas de existência que hoje respeitamos viveram outrora nessa atmosfera meio sepulcral: o homem de ciência, o artista, o gênio, o livre-pensador, o ator, o comerciante, o grande descobridor... Enquanto o sacerdote foi considerado o tipo supremo, toda espécie valiosa de homem foi desvalorizada... [...] [p. 120]

46.
[...] Pode ser elevação da alma quando um filósofo se cala, pode ser amor quando se contradiz; é possível, da parte do homem dedicado ao conhecimento, uma cortesia que minta. [...] [p. 121]

47.
A beleza não é um acaso. [...] As coisas boas são deveras dispendiosas: e sempre vale a lei de que quem as possui é diferente daquele que as adquire. Tudo que é bom é herança: o que não é herdado é imperfeito, é começo... [...] A rigorosa sustentação de gestos importantes e seletos, a obrigatoriedade de viver apenas com pessoas que não se “deixem ir” são perfeitamente suficientes para tornar uma pessoa importante e seleta: em duas ou três gerações já está tudo interiorizado. [...] [p. 122]

48.
Progresso em meu sentido. – Também eu falo de “retorno à natureza”, embora não seja exatamente uma volta, mas uma ascensão – à natureza e à naturalidade elevadas, livres e mesmo terríveis que brincam, podem brincar, com grandes tarefas... [...] A doutrina da igualdade!... Mas não há veneno mais venenoso: pois ela parece pregada pela própria justiça, enquanto é o fim da justiça... “Aos iguais  o que é igual, aos desiguais o que é desigual” – esse seria o verdadeiro discurso da justiça: e, consequência disso, “jamais igualar o que é desigual.” [...] [p. 124]

49.
[...] Semelhante espírito liberto se encontra em meio ao universo com um fatalismo alegre e confiante, na crença de que apenas a parte isolada é reprovável, de que tudo se redime e se afirma no todo – ele não nega mais... Mas semelhante crença é a mais elevada de todas as crenças possíveis: eu a batizei com o nome de Dioniso.

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quarta-feira, 2 de março de 2011

BAKUNIN, Michael Alexandrovich, 1814 – 1876. Textos anarquistas.


BAKUNIN, Michael Alexandrovich, 1814 – 1876. Textos anarquistas. Porto Alegre: L & PM, 2010. 160 pgs.
Quem sou eu
[...]
Sou um amante fanático da liberdade, considerando-a como único espaço onde podem crescer e desenvolver-se a inteligência, a dignidade e a felicidade dos homens; não esta liberdade formal, outorgada e regulamentada pelo Estado, mentira eterna que, em realidade, representa apenas o privilégio de alguns, apoiada na escravidão de todos; não esta liberdade individualista, egoísta, mesquinha e fictícia, enaltecida pela escola de J. J. Rousseau e por todas as outras escolas do liberalismo burguês, que considera o assim chamado direito de todo mundo, representado pelo Estado, como o limite do direito de cada um, o que conduz, sempre e necessariamente, o direito de cada um a zero.
Não, só aceito uma única liberdade que possa ser realmente digna deste nome, a liberdade que consiste no pleno desenvolvimento de todas as potencialidades materiais, intelectuais e morais que se encontrem em estado latente em cada um; a liberdade que não reconheça outras restrições que aquelas que nos são traçadas pelas leis de nossa própria natureza; de maneira que não há, propriamente, restrições, pois estas leis não nos são impostas por nenhum legislador de fora, situando-se ao lado ou acima de nós; elas nos são imanentes, inerentes e constituem a base de nosso ser, tanto material quanto intelectual e moral. Em vez de achar nelas um limite, devemos considerá-las como as condições reais e como a razão efetiva da nossa liberdade.
Entendo que a liberdade de cada um que, longe de parar como diante de um marco, diante da liberdade de outrem, encontra aí sua confirmação e sua extensão ao infinito; a liberdade ilimitada de cada um pela liberdade de todos, a liberdade pela solidariedade, a liberdade na igualdade; a liberdade triunfante da força bruta e do princípio de autoridade que nunca foi nada mais do que a expressão ideal desta força; a liberdade que, depois de ter derrubado todos os ídolos celestes e terrestres, fundará e organizará um mundo novo, o da humanidade solidária, sobre as ruínas de todas as Igrejas e de todos os Estados. [p. 37]
[...]
[...] Mas, partidário da liberdade, condição primeira da humanidade, penso que a igualdade deve estabelecer-se no mundo pela organização espontânea do trabalho e da propriedade coletiva das associações produtoras, livremente organizadas e federalizadas nas comunas, e pela federalização igualmente espontânea das comunas, e não pela ação suprema e tutelar do Estado. [p. 38]
[...]
Os comunistas acreditam que devem organizar as forças operárias para dominar a potência política dos Estados. Os socialistas revolucionários se organizam com vistas à destruição, ou se quisermos usar um eufemismo, com vistas ao aniquilamento dos Estados. Os comunistas são partidários do príncipe e da prática da autoridade, os socialistas revolucionários só tem confiança na liberdade. Uns e outros igualmente partidários da ciência que deve matar a superstição e substituir a fé; os primeiros queriam impô-la, os outros se esforçarão por propagá-la para que os grupos humanos, convencidos, se organizem e se federalizem espontaneamente, livremente, de baixo para cima, através de seu próprio movimento e de seus reais interesses, nunca seguindo um plano traçado antecipadamente e imposto às massas ignorantes por algumas inteligências superiores. [...] [p. 39]
[...]
[...] a humanidade deixou-se, por um tempo demasiado longo, governar, e que a fonte destas infelicidades não se encontra em uma ou outra forma de governo, mas no princípio e no próprio governo qualquer que ele seja. [p. 39]
[...]

Deus e o Estado (1871)

Indivíduo, sociedade. Liberdade
[...]
[...] o homem só realiza sua liberdade individual ou sua personalidade completando-se com todos os indivíduos que o cercam e somente graças ao trabalho e à força coletiva da sociedade, fora da qual, de todos os animais ferozes que existem na Terra, ele seria, sem dúvida e sempre, o mais estúpido e miserável. [p. 40]
[...]

A liberdade e eu
[...] A definição materialista, realista e coletivista da liberdade [...] é esta: o homem só se torna homem e só chega à consciência e à realização de sua humanidade em sociedade e somente através da ação coletiva da sociedade inteira; ele só se emancipa do jugo da natureza exterior pelo trabalho coletivo ou social que é o único capaz de transformar a superfície da Terra em lugar favorável aos progressos da humanidade. Sem esta emancipação material não pode haver a emancipação intelectual e moral para ninguém. Ele só pode emancipar-se do jugo de sua própria natureza, isto é, só pode subordinar os instintos e os movimentos de seu próprio corpo na direção de seu espírito cada vez mais desenvolvido, através da educação e da instrução; mas uma e outra são coisas eminentemente e exclusivamente sociais, pois fora da sociedade o homem teria permanecido eternamente na condição de animal selvagem ou de santo, o que significa quase a mesma coisa.
Enfim, um homem isolado não pode ter consciência de sua liberdade. Ser livre, para o homem, significa ser reconhecido, considerado e tratado como tal por um outro homem, por todos os homens que o circundam. A liberdade não é, pois, um fato de isolamento, mas de reflexão mútua, não de exclusão, mas de ligação; a liberdade de todo indivíduo é entendida apenas como a reflexão sobre sua humanidade ou sobre seu direito humano na consciência de todos os homens livres, seus irmãos, seus semelhantes.
Só posso considerar-me e sentir-me livre na presença e em relação a outros homens.
[...] Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, são igualmente livres. A liberdade do outro, longe de ser um limite ou a negação da minha liberdade, é, ao contrário, sua condição necessária e sua confirmação. [p. 42]
[...]

Estado e governo
[...]
[...] O Estado absolutamente não é a sociedade, é apenas uma forma histórica tão brutal quanto abstrata. [p. 43]
[...]
[...] O Estado é autoridade, é a força, é a ostentação e a enfatuação da força. Ele não se insinua, não procura converter; sempre que interfere, o faz de mau jeito, pois sua natureza não é de persuadir, mas de impor-se, de forçar. Inutilmente tenta mascarar esta natureza de violador legal da vontade dos homens, de negação permanente de sua liberdade. Então, mesmo que determine o bem, ele o estraga, precisamente porque o ordena, e porque toda ordem provoca e suscita revoltas legítimas da liberdade; e porque o bem, no momento, da moral humana, não divina, do ponto de vista do respeito humano e da liberdade, torna-se um mal. [p. 43]
[...]
A exploração é o corpo visível e o governo é a alma do regime burguês. E, como acabamos de ver, uma e outra, nesta ligação tão íntima, são tanto do ponto de vista teórico como prático, a expressão necessária e fiel do idealismo metafísico, a conseqüência inevitável desta doutrina burguesa que procura a liberdade e a moral dos indivíduos fora da solidariedade social.  [p. 44]
[...]

A Sociedade ou Fraternidade Internacional Revolucionária (1865)
[...]
A impossibilidade de tal federação ou aliança sem um programa comum que satisfaça igualmente os direitos e as legítimas necessidades de todas as nações e que, sem considerar os assim chamados direitos históricos, nem o que se chama a necessidade ou salvação dos Estados, nem as glórias nacionais, nem qualquer outra pretensão vaidosa ou ambiciosa de prepotência ou força, coisas que um povo deve saber rejeitar se quiser ser verdadeiramente livre, tendo somente, por fundamento e por princípio, a liberdade igual para todos e a justiça. [p. 57]
[...]
[...] as religiões [...] só dizem respeito à consciência individual de cada um, devendo ser mantidas unicamente por seus fiéis.  
Necessidade absoluta de cada país que quiser fazer parte desta federação livre de povos de substituir a organização centralista, burocrática e militar por uma organização federal, baseada na liberdade absoluta e na autonomia das regiões, das províncias, dos municípios, das associações e dos indivíduos com funcionários eletivos e responsáveis diante do povo, e com o armamento nacional, organização que não se formará, como atualmente, de cima para baixo, mas de baixo para cima e da circunferência para o centro, pelo princípio de federação livre, partindo dos indivíduos livres que formarão as associações, as comunas autônomas; das comunas autônomas que formarão as províncias autônomas; das províncias autônomas que formarão as regiões e das regiões que, federalizando-se livremente entre si, formarão os países que, por sua vez, formarão os países que, por sua vez, formarão cedo ou tarde a federação universal e mundial.
[...]
Impossibilidade da liberdade política sem igualdade política. Impossibilidade desta, sem igualdade econômica e social.
[...]
A terra pertence a todo mundo. Mas seu aproveitamento pertencerá apenas aos que a cultivem com suas próprias mãos. Abolição da renda da terra.
Sendo todas as riquezas sociais produzidas pelo trabalho, quem delas se aproveitar sem trabalho será um ladrão. [p. 59]
[...]
Sem nenhuma espoliação, mas pelos esforços e forças econômicas das associações operárias, o capital e os instrumentos de trabalho se tornarão propriedade dos que os utilizarem para  a produção de riquezas pelo seu próprio trabalho. [p. 60]
Cada homem deve ser o filho de suas obras, e só haverá justiça quando a organização da sociedade for tal que cada um ao nascer encontre os mesmos meios de manutenção, de educação, de instrução e, mais tarde, as mesmas facilidades externas de criar seu próprio bem-estar através do trabalho.
Em cada país poderá fazer-se a emancipação do casamento da tutela da sociedade e igualar os direitos das mulheres aos dos homens. [p. 60]
[...]
[...] a revolução deverá adquirir o caráter local no sentido de que não deverá começar por uma grande concentração de forças revolucionárias de um país em um único ponto; nem adquirir jamais o caráter romanesco e burguês de uma expedição quase revolucionário, mas, surgindo ao mesmo tempo em todos os pontos de um país, terá o caráter de uma verdadeira revolução popular na qual tomarão igualmente parte mulheres, velhos, crianças e que, por isso mesmo, será invencível. [...] [p. 61]
[...]
Ela se oporá às posições e às coisas, bem mais que aos homens, certa de que as coisas e as posições privilegiadas e anti-sociais, muito mais fortes do que os indivíduos, constituem o caráter e a força de seus inimigos. [p. 61]
[...]
[...] Assim, a ordem e a unidade, destruídas enquanto produtos da violência e do despotismo, renascerão do próprio seio da liberdade. [p. 62]


Catecismo revolucionário

Princípios gerais

[...]
Substituindo o culto de Deus pelo respeito e o amor da humanidade, declaramos a razão humana como critério único da verdade; a consciência humana como base da justiça; a liberdade individual e coletiva como criadora única da ordem da humanidade.
A liberdade é o direito absoluto de todo o homem ou mulher maiores de só procurar na própria consciência e na própria razão as sanções para seus atos, de determiná-los apenas por sua própria vontade e de, em conseqüência, serem responsáveis primeiramente perante si mesmos, depois, perante a sociedade da qual fazem parte, com a condição de que consintam livremente dela fazerem parte.
Não é verdadeiro que a liberdade de um homem seja limitada pela de todos os outros. O homem só é realmente livre na medida em que sua liberdade, livremente reconhecida  e representada como por um espelho pela consciência livre de todos os outros, encontre a confirmação de sua extensão até o infinito na sua liberdade. O homem só verdadeiramente livre entre outros homens igualmente livres, e como ele só é livre na condição de ser humano, a escravidão de um só homem sobre a terra, sendo uma ofensa contra o próprio princípio da humanidade, é uma negação da liberdade de todos. [p. 63]
A liberdade de cada um só se realiza, pois, com a igualdade de todos. A realização da liberdade na igualdade de direito e de fato é a justiça.
Existe apenas um dogma, uma única lei, uma única base moral para os homens, é a liberdade. Respeitar a liberdade do próximo é um dever; amá-lo, ajudá-lo, servi-lo é uma virtude. [p. 64]
[...]
[...] A ordem na sociedade deve ser resultante do maior desenvolvimento possível de todas as liberdades locais, coletivas e individuais. [p. 64]
[...]

Organização política
É impossível determinar uma norma concreta, universal e obrigatória para o desenvolvimento interior e para a organização política das nações; ficando a existência de cada uma subordinada a uma série de condições históricas, geográficas e econômicas diferentes e que nunca permitirão estabelecer um modelo de organização, igualmente bom e aceitável para todos. [p. 64]
[...]
[...] há condições essenciais, absolutas, fora das quais a realização prática e a organização da liberdade serão sempre impossíveis.
Essas condições são as seguintes:
[...] Liberdade absoluta de consciência e de propaganda para cada um, com a faculdade ilimitada de construir tantos templos quantos quiserem, aos seus deuses quaisquer que sejam, desde que paguem e mantenham os padres de sua religião. [p. 65]
[...]
Abolição das classes, das categorias, dos privilégios e de todas as espécies de distinções. Igualdade absoluta de direitos políticos para todos, homens e mulheres; sufrágio universal.
Abolição, dissolução e bancarrota moral, política, judiciária, burocrática e financeira do Estado tutelar, transcendente, centralista, substituto e alter ego da Igreja, e, como tal, causa permanente de empobrecimento, de embrutecimento e de submissão dos povos. [p. 65]
[...]
Eleição imediata e direta de todos os funcionários públicos, judiciários e civis, assim como dos representantes ou conselheiros nacionais, provinciais e municipais, pelo povo, isto é, sufrágio universal de todos os indivíduos, das associações produtivas e doa municípios.

Direitos individuais
Direito de cada um, desde o nascimento até a maioridade, de ser inteiramente mantido, fiscalizado, protegido, educado, instruído em todas as escolas públicas primárias, superiores, industriais, artísticas e científicas à custa da sociedade. [p. 66]
[...]
A liberdade de cada indivíduo maior, homem ou mulher, deve ser absoluta e completa, liberdade de ir e vir, de professar elevadamente todas as opiniões possíveis, de ser preguiçoso ou ativo, imoral ou moral, em suma, de dispor de sua própria pessoa e de seus bens como melhor lhe aprouver, sem dar satisfação a ninguém; liberdade de viver, seja honestamente pelo seu trabalho, seja explorando vergonhosamente a caridade ou a confiança privada, desde que esta caridade e esta confiança sejam voluntárias e só lhe sejam proporcionadas por indivíduos maiores. [p. 67]
[...]
A liberdade só pode e só deve defender-se pela liberdade, sendo um perigoso contra-senso querer atacá-la sob o pretexto de protegê-la [...] [p. 67]
[...]
[...] o sistema repressivo e autoritário, longe de ter sustado os abusos, sempre os propiciou de modo mais amplo e profundo nos países atingidos e que a moral pública e privada sempre desceu e subiu à medida que a liberdade dos indivíduos diminuía ou aumentava. [...] [p. 68]
[...]
[...] Abolição de todas as penas por tempo indeterminado ou muito longo e que não deixem nenhuma esperança, nenhuma possibilidade de reabilitação, devendo o crime ser considerado como uma doença e a punição antes como uma cura do que como uma vingança da sociedade. [p. 69]
[...]

Um federalismo internacionalista
[...]
4. [...] Fundado essencialmente sobre um ato ulterior de violência, a conquista ou o que na vida privada chamamos roubo com arrombamento, ato abençoado pela Igreja de uma religião qualquer, consagrado pelo tempo e por isso transformado em Direito histórico, e apoiando-se nesta divina consagração da violência triunfante como em um direito exclusivo e supremo, cada Estado centralista se coloca como a negação absoluta do direito de todos os outros Estados, só os reconhecendo, nos tratados que ultima com eles, por interesse político ou por impotência. [p. 95]
[...]
12. A liga reconhecerá a nacionalidade como um fato natural, tendo incontestavelmente direito a uma existência e a um desenvolvimento livre, não como um princípio, pois todo princípio deve ter o caráter da universidade e a nacionalidade, ao contrário, é um fato exclusivo, separado. O suposto princípio da nacionalidade, como foi colocado em nossos dias pelos governos da França, da Rússia e da Prússia e até por muitos patriotas alemães, poloneses, italianos e húngaros, é apenas um derivativo oposto pela reação ao espírito da revolução: eminentemente aristocrático no fundo, a ponto de desprezar os dialetos das populações não letradas, negando implicitamente a liberdade das províncias e a autonomia real das comunas, e mantido em todos os países não pelas massas populares, cujos interesses reais ele sacrifica sistematicamente a um suposto bem público, que nada mais é do que o das classes privilegiadas, este princípio exprime apenas os pretensos direitos históricos e a ambição dos Estados. [...] [p. 98]
[...]
13. A unidade é o objetivo em direção da qual tende irresistivelmente a humanidade. Mas ela se tornará fatal, destruidora da inteligência, da dignidade, da prosperidade dos indivíduos e dos povos, sempre que se formar fora da liberdade, seja sob a autoridade de uma idéia teológica, metafísica, política ou até econômica qualquer. O patriotismo que tem por objetivo a unidade fora da liberdade é um mau patriotismo, sempre funesto aos interesses populares e reais do país que pretende exaltar e servir, amigo, sem o saber, da reação – inimigo da revolução, isto é, da emancipação das nações e dos homens. A liga só poderá reconhecer uma única unidade: a que se constituir livremente pela federação das partes autônomas no todo, de forma que este, cessando de ser a negação dos direitos e dos interesses particulares, cessando de ser o cemitério onde forçosamente se enterram todas as prosperidades locais, se tornará ao contrário a confirmação e a fonte de todas estas autonomias e de todas estas prosperidades. [...] [p. 98]

A Igreja e o Estado
Diz-se que o acordo e a solidariedade universal dos interesses dos indivíduos e da sociedade nunca poderá realizar-se de fato, porque seus interesses, sendo contraditórios, não estão em condições de contrabalançar-se de si mesmos ou de chegar a uma interpretação qualquer. A tal objeção eu responderia que, se até hoje, os interesses nunca e em lugar algum estiveram de mútuo acordo, foi por causa do Estado, que sacrificou os interesses da maioria em proveito de uma minoria privilegiada. [p. 100]
[...]
Mas se os metafísicos, principalmente aqueles que acreditam na imortalidade da alma, afirmam que os homens são fora da sociedade seres livres, chegamos inevitavelmente então à conclusão de que os homens só podem unir-se em sociedade se renegarem sua liberdade, sua independência natural e sacrificarem seus interesses, primeiramente pessoais, e depois locais. Tal renúncia e tal sacrifício de si mesmo deve ser, por isso mesmo, tanto mais imperioso quanto mais numerosa for a sociedade e mais complexa sua organização. Em tal caso, o Estado é a expressão de todos os sacrifícios individuais. Existindo sob esta forma abstrata, e ao mesmo tempo violenta, continua, como conseqüência natural, a perturbar cada vez mais a liberdade individual em nome desta mentira que se chama “felicidade pública”, embora, evidentemente, represente apenas o interesse da classe dominante. O Estado, deste modo, nos aparece como uma inevitável negação e uma anulação de toda liberdade, de todo interesse, tanto individual quanto geral. [p. 101]
[...]
Nós, contudo, não acreditando nem em Deus nem na imortalidade da alma, nem na própria liberdade da vontade, afirmamos que a liberdade deve ser compreendida, na sua acepção mais completa e mais ampla, como a finalidade do progresso histórico da humanidade. [p. 101]
[...]
Nós outros, materialistas em teoria, tendemos na prática a criar e a tornar durável um idealismo racional e nobre. [p. 101]
[...]
Estamos convencidos de que toda a riqueza do desenvolvimento intelectual, moral e material do homem, assim como sua aparente independência, é o produto da vida em sociedade. [tcc]
Fora da sociedade, o homem não só não seria livre, como nem mesmo se tornaria um verdadeiro homem, isto é, um ser que tem consciência de si próprio, que sente, pensa e fala. O concurso da Inteligência e do trabalho coletivo tem podido forçar o homem a sair de seu estado de selvagem e bruto que constituía sua natureza primordial ou seu ponto inicial de desenvolvimento ulterior. Estamos profundamente convencidos desta verdade que toda a vida dos homens, interesses, tendências, necessidades, ilusões e até tolices, assim como as violências, as injustiças e todas as ações, aparentemente voluntárias, representam apenas a conseqüência das forças fatais da vida em sociedade. As pessoas não podem admitir a idéia da independência mútua sem renegar a influência recíproca da correlação das manifestações da natureza exterior.
Na própria natureza esta maravilhosa correlação e filiação dos fenômenos não é esperada, certamente, sem luta. Ao contrário, a harmonia das forças da natureza só aparece como um verdadeiro resultado desta luta contínua, que é a própria condição da vida e do movimento. Na natureza, assim como na sociedade, ordem sem luta é morte. [p. 101]
[...]
Somente a superioridade do homem sobre os outros animais e a faculdade de pensar trouxeram em seu desenvolvimento um elemento particular, completamente natural, diga-se de passagem, no sentido que, como tudo o que existe, o homem representa o produto material da união e da ação das forças. Este elemento particular é o raciocínio, ou esta faculdade de generalização e de abstração, graças à qual o homem pode proteger-se pelo pensamento, examinando-se e observando-se, como um objeto externo e estranho. Elevando-se identicamente acima de si mesmo, assim como do meio ambiente, chaga à abstração perfeita, ao nada absoluto. Este último limite da mais alta abstração do pensamento, este nada absoluto é Deus. [p. 103]
[...]
O homem facilmente acredita no que ele deseja e naquilo que não contradiz seus interesses. [p. 105]
[...]
Em sua grande maioria, as pessoas vivem em contradição consigo mesmas, e em contínuos mal-entendidos; geralmente não o notam, até que algum acontecimento extraordinário os retire de sua sonolência habitual e os force a dar uma olhada em si mesmos e em volta de si. [p. 106]


Programa e objetivo da Organização Secreta Revolucionária dos Irmãos Internacionais (1968)

Convencidos de que o mal individual e social reside muito menos nos indivíduos do que na organização das coisas e nas posições sociais, nós seremos humanos, tanto por sentimento de justiça quanto por cálculo de utilidade, e destruiremos sem piedade as posições e as coisas a fim de poder, sem nenhum perigo para a Revolução, poupar os homens. Negamos o livre-arbítrio e o pretenso direito da sociedade de punir. A própria justiça, tomada no seu sentido mais humano e mais amplo, é apenas uma idéia, por assim dizer, negativa e de transição; ela coloca o problema social, mas não o resolve, indicando apenas o único caminho possível de emancipação humana, isto é, de humanização da sociedade pela liberdade na igualdade; a solução positiva só poderá ser dada pela organização cada vez mais racional da sociedade. Esta solução tão desejada, ideal de todos nós, é a liberdade, a moralidade, a inteligência e o bem estar de cada um pela solidariedade de todos, a fraternidade humana. [p. 109]
[...]
A organização da sociedade sendo sempre em todos os lugares a única causa dos crimes cometidos pelos homens, há hipocrisia ou absurdo evidente da parte da sociedade em punir os criminosos, uma vez que toda punição supõe a culpa e os criminosos não são nunca culpados. A teoria da culpa e da punição surge da teologia, isto é, do casamento do absurdo com a hipocrisia religiosa. O único direito que se pode reconhecer à sociedade, em seu estado atual de transição, é o direito natural de assassinar os criminosos produzidos por ela mesma no interesse de sua própria defesa e não o de julgá-los e condená-los. [...] e, quanto mais a sociedade souber evitar utilizá-lo, mais ela estará próxima de sua real emancipação. [p. 110]
[...]
[...] a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas, isto é, a instituição do Estado e sua conseqüência assim como sua base natural, a propriedade individual.
Para fazer uma revolução radical é preciso, pois, atacar as posições e as coisas, destruir a propriedade e o Estado, assim não se terá necessidade de destruir os homens, e de condenar-se à reação infalível e inevitável que o massacre dos homens nunca deixou e não deixará nunca de produzir em cada sociedade. [111]
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Somos inimigos naturais destes revolucionários, futuros ditadores, regulamentadores e tutores da revolução, que, antes mesmo que os Estados monárquicos, aristocráticos e burgueses atuais sejam destruídos, sonham com a criação de novos Estados revolucionários, tão centralizadores e mais despóticos do que os Estados que existem hoje, que possuem uma vocação tão grande para a ordem criada por uma autoridade qualquer e um horror tão grande pelo que lhes parece desordem e que nada mais é do que a franca e natural expressão da vida popular, que, antes mesmo que uma boa e saudável desordem se produza pela revolução, sonham já com o fim e o cerceamento pela ação de uma autoridade qualquer que só terá o nome da revolução, mas que efetivamente nada mais será do que uma nova reação, pois será uma outra condenação das massas populares, governadas por decretos, à obediência, à imobilidade, à morte, isto é, à escravidão e à exploração por uma nova aristocracia pouco revolucionária.[p. 112]

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