PRÓLOGO
p.1
Em
1957, um objeto terrestre, feito pelo homem, foi lançado ao universo, onde
durante algumas semanas girou em torno da Terra [...]
Esse
evento, que em importância ultrapassa todos os outros, até mesmo a fissão do
átomo, teria sido saudado com incontida alegria, não fossem as incômodas
circunstâncias militares e políticas que o acompanhavam. [...]
A
reação imediata expressa no calor da hora, foi alívio ante o primeiro “passo
para a fuga dos homens de sua prisão na Terra”. E essa estranha declaração,
longe de ter sido o lapso acidental de algum repórter norte-americano, refletia
involuntariamente a extraordinária frase gravada há mais de 20 anos no obelisco
fúnebre de um dos grandes cientistas da Rússia: “A humanidade não permanecerá
para sempre presa à Terra.”
p.2
Devem
a emancipação e a secularização da era moderna, [...] terminar com um repúdio
ainda mais funesto de uma Terra que era a Mãe de todas as criaturas sob o
firmamento?
A
Terra é a própria quintessência da condição humana, e a natureza terrestre, ao
que sabemos, pode ser a única no universo capaz de proporcionar aos seres
humanos um habitat no qual eles podem
mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O artifício humano do mundo
separa a existência humana de todo ambiente meramente animal, mas a vida mesma
permanece fora desse mundo artificial, e por meio o homem permanece ligado a
todos os outros organismos vivos.
O
mesmo desejo de escapar do aprisionamento à Terra mani-...
p. 3
...festa-se
na tentativa de criar a vida em uma proveta, [...] [e] de prolongar a duração
da vida humana para além do limite dos 100 anos.
Esse
homem do futuro [...] parece imbuído por uma rebelião contra a existência
humana tal como ela tem sido dada – um dom gratuito vindo de lugar nenhum
(secularmente falando) que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo
produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de
realizar tal troca, assim como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade
de destruir toda a vida orgânica na Terra. A questão é apenas se desejamos usar
nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico, e essa questão não
pode ser decidida por meios científicos; é uma questão política de primeira
grandeza [...]
[...] O problema tem a ver com o fato de
que as “verdades” da moderna visão científica do mundo, embora possam ser
demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas tecnologicamente, já não se
prestam à expressão normal no discurso e no pensamento. Quando se fala
conceitual e coerentemente dessas “verdades”, as sentenças resultantes são
“talvez não tão sem sentido quanto um ‘círculo triangular’, mas muito mais que
um ‘leão alado’” (Erwin Schrödinger).
p. 4
[...]
Se for comprovado o divórcio entre o conhecimento (no sentido moderno de
conhecimento técnico [know-how]) e o
pensamento, então passaríamos a ser, sem dúvida, escravos indefesos, não tanto
de nossas máquinas quanto de nosso conhecimento técnico, criaturas desprovidas
de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais
mortífera que seja.
Sempre
que a relevância do discurso está em jogo, as questões tornam-se políticas por
definição, por é o discurso que faz do homem um ser político. Se seguíssemos o conselho, [...] de
ajustar nossas atitudes culturais ao estado atual de realização científica,
adotaríamos deveras um modo de vida no qual o discurso não teria mais sentido.
Pois, atualmente as ciências são forçadas a adotar uma “linguagem” de símbolos
matemáticos que, embora originariamente concebida apenas como uma abreviação de
afirmações enunciadas, contém agora afirmações que de modo algum podem ser
retraduzidas em discurso. [Os
cientistas] se movem em um mundo no qual o discurso perdeu seu poder. E tudo o
que os homens...
p.5
...fazem,
sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que se possa falar sobre.
Pode haver verdades para além do discurso e que podem ser de grande relevância
para o homem no singular, isto é, para o homem na medida em que, seja o que
for, não é um ser político. Os homens no plural, isto é, os homens na medida em
que vivem, se movem e agem neste mundo, só podem experimentar a significação
porque podem falar uns com os outros e se fazer entender aos outros e a si
mesmos.
[...]
A era moderna trouxe consigo uma glorificação teórica do trabalho, e resultou
na transformação factual de toda a sociedade em uma sociedade trabalhadora.
[...] É uma sociedade de trabalhadores a que está para ser liberada dos
grilhões do trabalho, uma sociedade que já não conhece aquelas outras
atividades superiores e mais significativas em vista das quais essa liberdade
mereceria ser conquistada.
p.6
O que
se nos depara, portanto, é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem
trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia
ser pior.
Este
livro não oferece uma resposta a essas preocupações e perplexidades. Tais
respostas são dadas diariamente e elas concernem à política prática e estão
sujeitas ao acordo de muitos; elas jamais poderiam se basear em considerações
teóricas ou na opinião de uma só pessoa, como se lidássemos aqui com problemas
para os quais só existe uma solução possível. O que proponho nas páginas que se
seguem é uma reconsideração da condição humana do ponto de vista privilegiado
de nossas experiências e nossos temores mais recentes. [...] O que proponho,
portanto, é muito simples: trata-se de pensar o que estamos fazendo.
Ele
aborda somente as articulações mais elementares da condição humana, aquelas
atividades que tradicionalmente, e também segundo a opinião corrente, estão ao
alcance de todo ser humano. Por essa e outras razões, a mais elevada e talvez a
mais pura atividade de que os homens são capazes, a atividade de pensar, é
deixada de fora das presentes considerações. Sistematicamente, portanto, o
livro limita-se a uma discussão do trabalho, da obra e da ação, que constituem
seus três capítulos...
p.7
...centrais.
Contudo,
a era moderna não coincide com o mundo moderno. Cientificamente, a era moderna,
que começou no século XVII, terminou no limiar do século XX; politicamente, o
mundo moderno em que vivemos hoje nasceu com as primeiras explosões atômicas. Não
discuto esse mundo moderno que constitui o pano de fundo da redação deste
livro. Limito-me, por um lado, a uma análise daquelas capacidades humanas
gerais que provêm da condição humana e são permanentes, isto é, que não podem
ser irremediavelmente perdidas enquanto não mudar a própria condição humana.
Por outro lado, o propósito final da análise histórica é o de rastrear até sua
origem a moderna alienação do mundo, em sua dupla fuga da Terra para o universo
e do mundo para o si-mesmo [self], a
fim de chegar a uma compreensão da natureza da sociedade [...]
Cap 1
A vita activa e a condição humana
p. 9
Com a
expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais:
trabalho, obra e ação.
O
trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano,
cujos crescimento espontâneo, metabolismo e resultante declínio estão ligados
às necessidades vitais produzidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho.
A condição humana do trabalho é a própria vida.
A obra
é a atividade correspondente à não-naturalidade [unnaturalness] da existência humana, que não está engastada no
sempre-recorrente [ever-recurrent]
ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último. A
obra proporciona um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de
qualquer ambiente natural. [...] A condição humana da obra é a mundanidade [worldliness].
A
ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem mediação das
coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de
que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. [...] essa
pluralidade é especificamente a
condição [...] de toda vida política.
p. 10
A ação seria um luxo desnecessário, [...] se os homens fossem repetições
interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza ou essência
fosse a mesma para todos e tão previsível quanto a natureza ou essência de qualquer
outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos
iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer
outro que viveu, vive ou viverá.
p. 11
Todas as três atividades e suas condições correspondentes estão
intimamente relacionadas com a condição mais geral da existência humana: o
nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O trabalho assegura não
apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. a obra e seu
produto, o artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à
futilidade da vida mortal e o caráter efêmero do tempo humano. a ação, na
medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a
condição para a lembrança [remembrance], ou seja, para a história.
[...] das três atividades, a ação tem a relação mais estreita com a
condição humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode
fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de
iniciar algo novo, isto é, de agir.
[...] como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e
não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político, em
contraposição ao pensamento metafísico.
O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas
produzidas pelas atividades humanas; mas as coisas que devem sua existência
exclusivamente aos homens constantemente condicionam, no entanto, os seus
produtores humanos.
p.12
[...] os homens, independente do que façam, são seres condicionados. tudo
que adentra o mundo humano por si próprio, ou para ele trazido pelo esforço
humano, torna-se parte da condição humana. O impacto da realidade do mundo
sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A
objetividade do mundo [...] e a condição humana complementam-se uma à outra;
por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem
coisas, [...]
[...] a condição humana não é o mesmo que a natureza humana, [...]
A mudança mais radical da condição humana que podemos imaginar seria uma
emigração dos homens da Terra para algum outro planeta. Tal evento, já não
inteiramente impossível, implicaria que o homem teria de viver sob condições
produzidas por ele mesmo, radicalmente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece.
p.13
O problema da natureza humana, [...] parece insolúvel, [...]
p.14
[...] as formas de cognição humana aplicáveis às coisas dotadas de
qualidades “naturais” [...] de nada nos [valeram] quando levantamos a pergunta:
e quem somos nós? É por isso que as tentativas de definir natureza
humana resultam quase invariavelmente da construção de alguma deidade, [...]
como uma espécie de ideia platônica do homem. [...] desmascarar tais conceitos
filosóficos do divino [...] não é uma demonstração da não existência de Deus, e
nem mesmo constitui argumento nesse sentido; [...] mas [...] pode lançar
suspeitas sobre o próprio conceito de “natureza humana”.
[...] as condições da existência humana [...] jamais podem “explicar” o
que somos ou responder à pergunta sobre quem somos, pela simples razão de que
jamais nos condicionam de modo absoluto. Essa sempre foi a opinião da
filosofia, em contraposição às ciências [...]
p. 15
2
O termo vita activa
O termo vita activa é carregado e sobrecarregado de tradição.
[...] E essa tradição, [...] é produto de uma constelação histórica específica:
o julgamento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e a pólis. [...]
O próprio termo [...] já ocorre em Agostinho [...] reflete ainda o seu
significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos-políticos.
Aristóteles distinguia três modos de vida bioi que os homens
podiam escolher livremente, isto é, em inteira independência das necessidades
da vida e das relações delas decorrentes. Essa condição prévia de liberdade
excluía qualquer modo de vida dedicado sobretudo à preservação da vida [...]
[escravo, artesão, mercador] Em suma, excluía todos aqueles que, involuntariamente
ou voluntariamente, por toda a vida ou temporariamente, já não podiam dispor em
liberdade dos seus movimentos e atividades.
Os três modos de vida restantes têm em...
p.16
...comum o fato de se ocuparem do “belo”, isto é, de coisas que não eram
necessárias nem meramente úteis: a vida de deleite dos prazeres do corpo, na
qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da pólis,
na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à
investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode
ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada pelo consumo
humano.
p. 17
Com o desaparecimento da antiga cidade-Estado [...] a expressão vita
activa perdeu o seu significado especificamente político e passou a denotar
todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. [...] isso não queria
dizer que a obra e o trabalho tinham ascendido na hierarquia das atividades
humanas e eram agora tão dignos quanto a vida dedicada à política. De fato, o
oposto era verdadeiro: a ação passara a ser vista como uma das necessidades da
vida terrena, de modo que a contemplação [...] era agora o único modo de vida
realmente livre.
Contudo, a enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro
tipo de atividade, inclusive a ação, não é de origem cristã. Encontramo-la na
filosofia política de Platão,...
p. 18
...em que toda a reorganização utópica da vida na pólis é não
apenas dirigida pelo superior discernimento do filósofo, mas não tem outra
finalidade senão tornar possível o modo de vida filosófico. A articulação
aristotélica dos diferentes modos de vida, em cuja ordem a vida de prazer tem
papel secundário, é orientada claramente pelo ideal da contemplação (theória).
À antiga liberdade em relação às necessidades da vida e À coerção de
outros, os filósofos acrescentaram a liberdade e a cessação de toda atividade
política (skolé), de sorte que a posterior pretensão dos cristãos de
serem livres de envolvimento em assuntos mundanos, de todos os negócios deste
mundo, foi precedida pela apolitia filosófica da antiguidade tardia, e
dela se originou. O que até então havia sido exigido somente por alguns poucos
era agora visto como direito de todos.
A expressão vita activa, compreendendo todas as atividades
humanas e definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação,
corresponde, portanto, mais estritamente à askholia grega
(“inquietude”), com a qual Aristóteles designava toda atividade, que ao bios
politikos grego. Já desde Aristóteles, a distinção entre quietude e
inquietude, entre uma abstenção quase estática de movimento físico externo e
qualquer tipo de atividade, é mais decisiva que a distinção…
p. 19
...entre os modos de vida político e teórico, porque afinal pode ocorrer
em qualquer um dos três modos de vida.
Tradicionalmente, e até o início da era moderna, a expressão vita activa
jamais perdeu sua conotação negativa de “in-quietude”, nec-otium, a-skholia.
Como tal, permaneceu intimamente ligada à distinção grega, ainda mais
fundamental, entre as coisas que são por si o que são e as coisas que devem ao
homem a sua existência, entre as coisas que são physei e as coisas que
são nomó. O primado da contemplação sobre a atividade baseia-se na
convicção de que nenhuma obra de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade
o kosmos físico, que resolve em torno de si mesmo, em imutável
eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja humana,
seja divina.
p. 20
Tradicionalmente, portanto, a expressão vita activa recebe seu
significado da vita contemplativa; a dignidade que lhe é conferida é
muito limitada porque serve às necessidades e carências da contemplação em um
corpo vivo [à necessidade de um corpo vivo, ao qual a contemplação permanece
vinculada]. O cristianismo, com a sua crença em um outro mundo cujas alegrias
se pronunciam nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao
rebaixamento da vita activa à sua posição derivada, secundária; mas a
determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação
(theória) como uma faculdade humana acentuadamente diversa do pensamento
e do raciocínio, que ocorreu na escola socrática e que, desde então, dominou o
pensamento metafísico e político durante a nossa tradição.
p. 21
Portanto, o uso da expressão vita activa, como aqui o proponho,
está em manifesta contradição com a tradição, é que duvido não da validade da
experiência subjacente à distinção, mas antes da ordem hierárquica inerente a
ela desde o início.
Sustento simplesmente que o enorme valor da contemplação da hierarquia
tradicional embaçou as diferenças e articulações no âmbito da própria vita
activa e que, a despeito das aparências, essa condição não foi
essencialmente alterada pelo moderno rompimento com a tradição nem pela
inversão final da sua ordem hierárquica, em Marx e Nietzsche.
A inversão moderna tem em comum com a tradicional hierarquia a premissa
de que a mesma preocupação humana central deve prevalecer em todas as
atividades dos homens, posto que, sem um princípio abrangente único, nenhuma
ordem poderia ser estabelecida. Tal premissa não é evidente, e meu emprego da
expressão vita activa pressupõe que a preocupação subjacente a todas as
suas atividades não é a mesma preocupação da vita contemplativa, como não lhe é
superior nem inferior.
p. 22
3
Eternidade
versus imortalidade
p. 25
Politicamente
falando, se morrer é o mesmo que “deixar de estar entre os homens”, a
experiência do eterno é uma espécie de morte, e a única coisa que a separa da
morte real é que ela não é definitiva, porque nenhuma criatura viva pode
suportá-la durante muito tempo. E é isso precisamente que separa a vita contemplativa da vita activa no pensamento medieval. No
entanto, é decisivo que a experiência do eterno, diferentemente da experiência
do imortal, não corresponda a qualquer atividade nem possa ser convertida em
nenhuma delas, visto que mesmo a atividade do
p. 26
pensamento,
que ocorre no interior de uma pessoa por meio de palavras, é obviamente não
apenas inadequada para propiciar tal experiência, mas a interromperia e a
arruinaria.
A theória, ou “contemplação”, é a
designação dada à experiência do eterno, em contraposição a todas as outras
atitudes que, no máximo, podem ter a ver com a imortalidade.
Contudo,
a vitória derradeira da preocupação com a eternidade sobre todos os tipos de
aspiração à imortalidade não se deveu ao pensamento filosófico.
[Queda do
império romano e promoção do evangelho]
[...]
imortalidade que, originalmente, fora a fonte e o centro da vita activa.
p. 27
cap. II
Os
domínios público e privado.
4
O homem:
um animal social ou político
Todas as
atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos,
mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos
homens.
p. 28
Só a ação
é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem deus é capaz de ação, e só
a ação depende inteiramente da constante presença de outros.
Melhor do
que qualquer teoria elaborada, essa substituição inconsciente do político pelo
social revela até que ponto havia sido perdida a original compreensão grega da
política. Para tanto, é significativo, mas não decisivo, que a palavra “social”
seja de origem romana e não tenha equivalente na língua e no pensamento gregos.
p.29
Segundo o
pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas é
diferente dessa associação natural cujo centro é o lar (oikio) e a família, mas encontra-se em oposição direta a ela. O
surgimento da cidade-Estado significou que o homem recebera, “além de sua vida
privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios
politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há
uma nítida diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon).
p. 31
O
pensamento era secundário com relação ao discurso; mas o discurso e a ação eram
tidos como coevos e iguais, da mesma categoria e da mesma espécie; [...] o ato
de encontrar as palavras certas no momento certo, independentemente da
informação ou comunicação que transmitem, constitui uma ação. Somente a pura
violência é muda [...]
p. 32
Na experiência
da pólis, [...] a ação e o discurso
separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A ênfase
passou da ação para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão e não
como a forma especificamente humana de responder, replicar e estar à altura do
que aconteceu ou do que foi feito.
p. 34
A pólis e a família
A
distinção entre as esferas privada e pública da vida corresponde aos domínios
da família e da política, que existiram como entidades diferentes e separadas,
pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-Estado; mas a eclosão da esfera
social, que estritamente não era nem privada nem pública, é um fenômeno
relativamente novo, cuja origem coincidiu com a eclosão da era moderna e que
encontrou sua forma política no Estado-nação.
Em nosso
entendimento, a linha divisória é inteiramente difusa, porque vemos o corpo de
povos e
p. 35
comunidades
políticas como uma família cujos assuntos diários devem ser zelados por uma
gigantesca administração doméstica de âmbito nacional. O pensamento científico
que corresponde a esse desdobramento já não é a ciência política, e sim a
“economia nacional” ou a economia social”, [...] todas as quais indicam uma
espécie de “administração doméstica coletiva”; o que chamamos de “sociedade” é
o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o
fac-símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de
organização é denominada “nação”.
[...] o
que fosse “econômico”, relacionado com a vida do indivíduo e a sobrevivência da
espécie, não era assunto político, mas doméstico por definição. [para os
antigos]
p. 37
[...] a
comunidade natural dólar nascia da necessidade, e a necessidade governava todas
as atividades realizadas nela.
O domínio da pólis, ao contrário, era a esfera da liberdade, e se havia uma
relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da
vida no lar constituía a condição óbvia para a liberdade da pólis. A política não podia, em
circunstâncias alguma, ser apenas um meio para proteger a sociedade [...]
[...] é a
liberdade da sociedade [...] que requer e justifica a limitação da autoridade
política. A liberdade situa-se no domínio do social, e a força e a violência
tornam-se monopólio do governo.
p. 38
[...] a
liberdade situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é
primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar
privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por
serem os únicos meios de vencer a necessidade – governando escravos, por
exemplo - e tornar-se livre.
p. 39
A pólis diferenciava-se do lar pelo fato
de somente conhecer “iguais”, ao passo que o lar era o centro da mais severa
desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às
necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar.
p. 40
A
igualdade, portanto, longe de estar ligada à justiça, como nos tempos modernos,
era a própria essência da liberdade [...]
No mundo
moderno, os domínios social e político diferem muito menos entre si. O fato de
que a política é apenas uma função da sociedade [...] não foi descoberto por
Karl Marx; pelo contrário, foi uma das premissas axiomáticas que Marx recebeu
acriticamente dos economistas políticos da era moderna.
[...] com
a ascendência da sociedade, isto é, do “lar” (oikia) ou das atividades econômicas ao domínio público, a
administração doméstica e todas as questões pertinentes à esfera privada da
família transformaram-se em preocupação “coletiva”.
p. 41
Esse
abismo entre o privado e o público ainda existia de certa forma na Idade Média,
embora houvesse perdido muito da sua importância e mudado inteiramente de
localização.
[...] o
domínio secular, sob o feudalismo, era inteiramente aquilo que o domínio
privado havia sido na antiguidade.
p. 42
A
transferência de todas as atividades humanas para o domínio privado e a
conformação de todas as relações humanas ao molde do lar atingiram
profundamente as organizações profissionais especificamente medievais nas
cidades – as guildas, confréries e compagnos – e mesmo as primeiras companhias comerciais [...] (companis) [...] ‘aqueles que comem do
mesmo pão e do mesmo vinho’.
p. 46
6
O advento
do social
O aparecimento
da sociedade – a ascensão da administração do lar, de suas atividades, seus
problemas e dispositivos organizacionais – do sombrio interior do lar para a
luz da esfera pública não apenas turvou a antiga fronteira entre o privado e o
público, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importância
para a vida do indivíduo e do cidadão, ao ponto de torna-los quase
irreconhecíveis.
p. 47
Hoje não
pensamos mais primeiramente em privação quando empregamos a palavra
“privatividade”, e isso em parte se deve ao enorme enriquecimento da esfera
privada por meio do moderno individualismo.
[...]
O fato
histórico decisivo é que a privatividade moderna, em sua função mais relevante,
a de abrigar o que é íntimo, foi descoberta não como o oposto da esfera
política, mas da esfera social, com a qual é, portanto, mais próxima e
autenticamente relacionada.
O
primeiro eloquente explorador da intimidade [...] foi Jean-Jacques Rousseau.
p.48
O
surpreendente florescimento da poesia e da música, a partir de meados do século
XVIII até quase o último terço do século XIX, acompanhado do surgimento do
romance, a única forma de arte inteiramente social, coincidindo com um não
menos impressionante declínio de todas as artes mais públicas, especialmente a
arquitetura, constitui suficiente testemunho de uma estreita relação entre o
social e o íntimo.
A notável
...
p. 49
...coincidência
da ascensão da sociedade com o declínio da família indica claramente que o que
ocorreu, na verdade, foi a absorção da unidade familiar por grupos sociais
correspondentes.
Um fator
decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de
ação, que outrora era excluída...
p. 50
...do lar
doméstico. Ao invés da ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros
certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas
tendentes a “normalizar” os seus membros, a fazê-los comportarem-se, a excluir
a ação espontânea ou a façanha extraordinária.
[...] a
vitória da igualdade no mundo moderno é apenas o reconhecimento político e
jurídico do fato de que a sociedade conquistou o domínio público, e que a
distinção e a diferença tornaram-se assuntos privados do indivíduo.
Essa
igualdade moderna, baseada no conformismo inerente à sociedade, e que só é
possível porque o comportamento substitui a ação como principal forma de
relação humana, [...]
p. 51
É o mesmo
conformismo, a suposição de que os homens se comportam ao invés de agir em
relação aos demais, que está na base da moderna ciência da economia, cujo
nascimento coincidiu com o surgimento da sociedade e que, juntamente com seu
principal instrumento técnico, a estatística, se tornou a ciência social por
excelência.
P. 52
As leis
da estatística são válidas somente quando se lida com grandes números e longos
períodos de tempo, e os atos ou eventos só podem aparecer estatisticamente como
desvios ou flutuações. A justificativa da estatística é a de que os feitos e
eventos são ocorrências raras na vida cotidiana e na história. Contudo, o pleno
significado das relações cotidianas revela-se não na vida do dia-a-dia, mas em
feitos raros, tal como a importância de um período histórico é percebida somente
nos poucos eventos que o iluminam.
[...]
tudo que não é comportamento cotidiano ou tendência automática é descartado
como irrelevante.
[...]
cada aumento populacional significa um aumento da validade e uma nítida
diminuição dos “desvios”. Politicamente, isso significa que, quanto maior é a
população de qualquer corpo político, maior é a probabilidade de que o social,
e não o político, constitua o domínio público.
p. 53
A
uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico inócuo; é sim
o ideal político, não mais secreto, de uma sociedade que, inteiramente submersa
na rotina da vida cotidiana, aceita pacificamente a concepção inerente à sua
própria existência.
p. 56
Desde o
advento da sociedade, desde a admissão das atividades domésticas e da
administração do lar no domínio público, uma das principais características do
novo domínio tem sido uma irresistível tendência a crescer, a devorar os
domínios mais antigos do político e do privado, bem como a esfera da
intimidade, instituída mais recentemente.
p. 57
A
sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da vida, e de
nada mais, adquire importância pública, e na qual se permite que as atividades
relacionadas com a mera sobrevivência apareçam em público.
A
atividade de trabalhar, embora relacionada, em qualquer circunstância, com o
processo vital em seu sentido mais elementar, o biológico, permaneceu
estacionária durante milhares de anos, aprisionada no eterno retorno do
processo vital ao qual se encontrava ligada. A promoção do trabalho à estatura
de coisa pública, longe de eliminar o seu caráter de processo [...], liberou,
ao contrário, esse processo de sua recorrência circular e monótona e
transformou-o em progressivo desenvolvimento, cujos resultados alteraram
inteiramente, em poucos séculos, todo o mundo habitado.
p. 58
O que
chamamos de artificial crescimento do natural é visto geralmente como o aumento
constantemente acelerado da produtividade do trabalho. O fator isolado mais importante
nesse aumento contínuo foi, desde o início, a organização ada atividade do
trabalho, visível na chamada divisão do trabalho, que precede a revolução
industrial, e na qual se baseia até mesmo a mecanização dos processos de
trabalho, o segundo fator mais importante na produtividade do trabalho.
p. 59
Aparentemente,
em nenhuma outra esfera da vida atingimos tamanha excelência quanto na
revolucionária transformação da atividade do trabalho, ao ponto em que o
significado verbal do próprio termo [...] começou a perder o seu significado
para nós.
p. 60
Toda
atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais igualada na
privatividade; para a excelência, por definição, é sempre requerida a presença
de outros, e essa presença exige a formalização do público, constituído pelos
pares do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais
ou inferiores.
p. 61
Nem a
educação, nem a engenhosidade, nem o talento podem substituir os elementos
constitutivos do domínio público, que fazem dele o local adequado para a
excelência humana.
7
O domínio
público: o comum
O termo
“público” denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas não completamente
idênticos.
Significa,
em primeiro lugar, que tudo que aparece em público pode ser visto e ouvido por
todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência [...] constitui
a realidade.
[...]
mesmo as maiores forças da vida íntima [...] levam uma espécie de existência
incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas,
desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo que assumam um
aspecto adequado à aparição pública.
p. 62
inter
homines esse – “estar entre os homens”
[...] a
dor [...], e a morte são tão subjetivas...
p. 63
... e
alheias ao mundo das coisas e dos homens que não podem assumir aparência
alguma.
[...] na
cena pública; [...], só pode ser tolerado o que é considerado relevante, digno
de ser visto e ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente
privado.
p. 64
O moderno
encantamento com “pequenas coisas”, embora pregado pela poesia do início do
século XX em quase todas as línguas europeias, encontrou sua apresentação
clássica no petit bonheur do povo
francês.
Esse
alargamento do privado [...] não o torna público, não constitui um domínio
público, mas, pelo contrário, significa apenas que o domínio público foi quase
completamente minguado, de modo que, por toda parte, a grandeza cedeu lugar ao
encanto; pois, embora o domínio público possa ser vasto, não pode ser
encantador, precisamente porque é incapaz de abrigar o irrelevante.
Em
segundo lugar, o termo “público” significa o próprio mundo, na medida em que é
comum a todos nós e diferente do lugar que privadamente possuímos nele. [...]
tem a ver com o artefato humano, com o que é fabricado pelas mãos humanas,
[...].
[...]
como todo espeço-entre [in-between],
o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si.
p. 65
O domínio
público, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e,
contudo, evita que caiamos uns sobre os outros, por assim dizer. O que torna a
sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas
envolvidas, [...], mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las,
relacioná-las e separá-las.
Encontrar
um vínculo entre as pessoas suficientemente forte para substituir o mundo foi a
principal tarefa política da primeira filosofia cristã; e foi agostinho quem
propôs edificar sobre a caridade não apenas a “fraternidade” cristã, mas todas
as relações humanas.
p. 66
A
estrutura da vida comum foi modelada pelas relações entre os membros de uma
família porque estas eram sabidamente não políticas e mesmo antipolíticas. Jamais
existiu um domínio público entre os membros de uma família, e era, portanto,
improvável que viesse a surgir da vida comunitária cristã, se essa fosse
governada pelo princípio da caridade e nada mais.
p. 67
A não
mundanidade como um fenômeno político só é possível com a premissa de que o
mundo não durará mas, com tal premissa, é quase inevitável que a não
mundanidade venha, de uma forma ou de outra, a dominar a cena política.
Só a
existência de um domínio público e a subsequente transformação do mundo em uma
comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles
dependem inteiramente da permanência. Se o mundo deve conter um espaço público,
não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que
estão vivos, mas tem de transcender a duração da vida de homens mortais.
p. 68
[...] o
mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando
morremos.
Mas esse
mundo comum só pode sobreviver ao vir e ir das gerações na medida em que
aparece em público. É a publicidade do domínio público que pode absorver e
fazer brilhar por séculos tudo o que os homens venham a querer preservar da ruína
natural do tempo.
p. 69
A
admiração pública é também algo a ser usado e consumido, e o status, como diríamos hoje, satisfaz uma
necessidade como o alimento satisfaz outra: [...]
p. 70
Assim, o
que importa não é que haja falta de admiração pública pela poesia e pela
filosofia no mundo moderno, mas sim que essa admiração não constitui um espaço
no qual as coisas são salvas da destruição pelo tempo.
A
importância de ser visto e ouvido por outros provém do fato de que todos veem e
ouvem de ângulos diferentes. É esse o significado da vida pública, em
comparação com a qual até a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode
oferecer somente o prolongamento ou multiplicação de cada indivíduo.
p. 71
Somente
quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, em variedade de aspectos,
sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua volta sabem que veem
identidade na mais completa diversidade, pode a realidade do mundo aparecer
real e fidedignamente.
O mundo
comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite
apresentar-se em uma única perspectiva.
p. 72
8
O domínio
privado: a propriedade
A
privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem
privado não aparece, e, portanto, é como se não existisse. O que quer que ele
faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem
importância para ele é desprovido de interesse para os outros.
p. 75
[...]
aparentemente, a propriedade possui certas qualificações que, embora situadas
no domínio privado, sempre foram tidas como sendo da máxima importância para o
corpo político.
p. 83
Não é uma
invenção de Karl Marx, mas algo da natureza dessa mesma sociedade que a
privatividade, em qualquer sentido, possa apenas estorvar a evolução da
“produtividade” social e, portanto, que quaisquer considerações em torno da
posse privada devam ser rejeitadas em benefício do processo sempre crescente da
riqueza social.
9
O social
e o privado
O que
chamamos anteriormente de advento do social coincidiu historicamente com a
transformação do interesse privado pela propriedade privada em uma preocupação
pública. Logo que ingressou no domínio público, a sociedade assumiu o disfarce
de uma organização de proprietários [property-owners],
que, ao invés de requererem o acesso ao domínio público em virtude de sua
riqueza, exigiram dele proteção para o acúmulo de mais riqueza.
p. 84
“A
comunidade [commonwealth] [...]
existia principalmente em benefício da riqueza
comum [common wealth].
p. 85
[...]
estamos em posição bem melhor para compreender as consequências, para a
existência humana, do desaparecimento de ambas essas esferas da vida – a esfera
pública, porque se tornou uma função da esfera privada, e a esfera privada,
porque se tornou a única preocupação comum que restou.
[...] a
moderna descoberta da intimidade parece constituir uma fuga do mundo exterior
como um todo para a subjetividade interior do indivíduo, subjetividade esta que
antes fora abrigada e protegida pelo domínio privado.
p. 86
Historicamente,
a premissa de Locke, de que o trabalho do corpo de uma pessoa é a origem da
propriedade, é mais que duvidosa: no entanto, dado o fato de que já vivemos em
condições nas quais a única propriedade em que podemos confiar é o nosso
talento e a nossa força de trabalho, é mais que provável que ela venha a se
tornar verdadeira.
A
diferença entre o que temos em comum e o que possuímos privadamente é, em
primeiro lugar, que as nossas posses privadas, que usamos e consumimos
diariamente, são muito mais urgentemente necessárias que qualquer parte do
mundo comum; sem a propriedade, como disse Locke, “de nada vale o comum”.
p. 87
A segunda
saliente característica não privativa da privatividade é que as quatro paredes
da propriedade privada de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o
mundo público comum [...]. Uma existência vivida inteiramente em público, na
presença de outros, torna-se, como se diz, superficial. Retém a sua
visibilidade, mas perde a qualidade resultante de vir à luz a partir de um
terreno mais sombrio, que deve permanecer oculto a fim de não perder sua
profundidade em um sentido muito real, não subjetivo. O único modo eficaz de
garantir a escuridão do...
p. 88
... que
deve ser escondido da luz da publicidade é a propriedade privada, um lugar
possuído privadamente para se esconder.
p. 89
O fato
de que a era moderna emancipou as classes operárias e as mulheres quase no
mesmo momento histórico deve, certamente, ser ...
p. 90
...
incluído entre as características de uma era que já não acreditava que as
funções corporais e as preocupações matérias deviam ser escondidas.
10
A
localização das atividades humanas
Em
bora a distinção entre o privado e o público coincida com a oposição entre a
necessidade e a liberdade, entre a futilidade e a permanência e, finalmente,
entre a vergonha e a honra, não é de forma alguma verdadeiro que somente o
necessário, o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar adequado no domínio
privado. O significado mais elementar dos dois domínios indica que há coisas
que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas em público para
que possam adquirir alguma forma de existência.
p. 91
[...]
Quando a bondade aparece abertamente já não é bondade, embora possa ainda ser
útil como caridade organizada ou como um ato de solidariedade.
p. 92
O amor
à sabedoria e o amor à bondade, caso se resolvam nas atividades de filosofar e
de realizar boas obras, têm em comum o fato de que cessam imediatamente, -
cancelam-se, por assim dizer – sempre que se presume que o homem pode ser sábio ou ser bom.
p. 93
Estar
em solitude significa estar consigo mesmo; e, portanto, o ato de pensar, embora
possa ser a mais solitária das atividades, nunca é realizado inteiramente sem
um parceiro e sem companhia.
[...]
O filósofo sempre pode contar com a companhia dos pensamentos, ao passo que as
boas ações não podem ser companhia para ninguém; devem ser esquecidas no
instante [...]
p. 94
[...]
o ato de pensar, por poder ser lembrado, pode cristalizar-se em pensamentos, e
os pensamentos, como todas as coisas que devem sua existência à recordação,
podem ser transformados em objetos tangíveis que, como a página escrita ou o
livro impresso, se tornam parte do artifício humano. As boas obras, por deverem
ser imediatamente esquecidas, jamais podem tornar-se parte do mundo; vêm e vão
sem deixar vestígios. Elas realmente não são deste mundo.
Em
certo sentido, portanto, a bondade e o desamparo têm muito mais relevância para
a política que a sabedoria e a solitude; mas, somente a solitude pode
constituir um autêntico modo de vida, na figura do filósofo, ao passo que a
experiência muito mais geral do desamparo está em tal contradição com a
condição humana da pluralidade que simplesmente não pode ser suportada durante
muito tempo [...]
p. 95
Como
um modo consistente de vida, a bondade, portanto, não é apenas impossível nos
confins do domínio público, mas é até destruidora dele.
***
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